domingo, 6 de setembro de 2009

Criação imperfeita

Desde tempos imemoriais, ao se deparar com a imensa complexidade da natureza, o homem buscou nela padrões repetitivos, algum tipo de ordem. Isso faz muito sentido. Afinal, ao olharmos para os céus, vemos que existem padrões organizados, movimentos periódicos que se repetem, definindo ciclos naturais aos quais estamos profundamente ligados: o nascer e o pôr do Sol, as fases da Lua, as estações do ano, as órbitas planetárias.Com Pitágoras, 2.500 anos atrás, a busca por uma ordem natural das coisas foi transformada numa busca por uma ordem matemática: os padrões que vemos na natureza refletem a matemática da criação. Cabe ao filósofo desvendar esses padrões, revelando assim os segredos do mundo.
Ademais, como o mundo é obra de um arquiteto universal (não exatamente o Deus judaico-cristão, mas uma divindade criadora mesmo assim), desvendar os segredos do mundo equivale a desvendar a "mente de Deus". Escrevi recentemente sobre como essa metáfora permanece viva ainda hoje e é usada por físicos como Stephen Hawking e muitos outros.
Essa busca por uma ordem matemática da natureza rendeu -e continua a render- muitos frutos. Nada mais justo do que buscar uma ordem oculta que explica a complexidade do mundo. Essa abordagem é o cerne do reducionismo, um método de estudo baseado na ideia de que a compreensão do todo pode ser alcançada através do estudo das suas várias partes.
Os resultados dessa ordem são expressos através de leis, que chamamos de leis da natureza. As leis são a expressão máxima da ordem natural. Na realidade, as coisas não são tão simples. Apesar da sua óbvia utilidade, o reducionismo tem suas limitações. Existem certas questões, ou melhor, certos sistemas, que não podem ser compreendidos a partir de suas partes. O clima é um deles; o funcionamento da mente humana é outro. Os processos bioquímicos que definem os seres vivos não podem ser compreendidos a partir de leis simples, ou usando que moléculas são formadas de átomos. Essencialmente, em sistemas complexos, o todo não pode ser reduzido às suas partes. Comportamentos imprevisíveis emergem das inúmeras interações entre os elementos do sistema. Por exemplo, a função de moléculas com muitos átomos, como as proteínas, depende de como elas se "dobram", isto é, de sua configuração espacial. O funcionamento do cérebro não pode ser deduzido a partir do funcionamento de 100 bilhões de neurônios.
Sistemas complexos precisam de leis diferentes, que descrevem comportamentos resultantes da cooperação de muitas partes. A noção de que a natureza é perfeita e pode ser decifrada pela aplicação sistemática do método reducionista precisa ser abolida. Muito mais de acordo com as descobertas da ciência moderna é que devemos adotar uma abordagem múltipla, e que junto ao reducionismo precisamos utilizar outros métodos para lidar com sistemas mais complexos. Claro, tudo ainda dentro dos parâmetros das ciências naturais, mas aceitando que a natureza é imperfeita e que a ordem que tanto procuramos é, na verdade, uma expressão da ordem que buscamos em nós mesmos.
É bom lembrar que a ciência cria modelos que descrevem a realidade; esses modelos não são a realidade, só nossas representações dela. As "verdades" que tanto admiramos são aproximações do que de fato ocorre.
As simetrias jamais são exatas. O surpreendente na natureza não é a sua perfeição, mas o fato de a matéria, após bilhões de anos, ter evoluído a ponto de criar entidades capazes de se questionarem sobre a sua existência.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Criação Imperfeita"

os dogons e seu conhecimento ancestral de sirius


Poder celestial

Físico italiano propõe que o conhecimento astronômico de povos antigos ajudava a criar "ambientes sagrados'

Nada mais natural que o sujeito que visita o Equador (país) queira aproveitar para conhecer o Equador (linha imaginária). Os equatorianos aproveitaram esse desejo compreensível para construir o vilarejo turístico de Mitad del Mundo, a 13 km de Quito. Que os gringos não ouçam, mas a verdadeira "metade do mundo" fica algumas centenas de metros ao norte de Mitad del Mundo. Os restos de um monumento pré-colombiano, provavelmente anterior aos incas e de origem incerta, marcam o local exato cruzado pela linha do Equador.
Anedotas irônicas desse naipe pontuam o livro "Mysteries and Discoveries of Archaeoastronomy" ("Mistérios e Descobertas da Arqueoastronomia"), do físico italiano Giulio Magli, professor da Universidade Politécnica de Milão. Um dos principais objetivos de Magli é chacoalhar os preconceitos do leitor e impedir que ele continue a imaginar civilizações antigas como primitivas e pouco sofisticadas, em especial no que se refere ao conhecimento astronômico. Para o pesquisador, nenhum povo do passado merece a alcunha de bárbaro.
Por outro lado, ele é sensato o suficiente para não cometer o erro oposto. Que ninguém espere relatos sobre contatos imediatos do terceiro grau ou tecnologias alienígenas dando uma mãozinha na construção das pirâmides egípcias e maias. Num passeio por quase todas as culturas antigas que deixaram restos monumentais de sua existência -dos menires (grandes postes de pedra) da Bretanha francesa que inspiraram o bonachão Obelix aos desenhos gigantescos de Nazca, no Peru-, Magli mostra como dados astronômicos relativamente precisos foram obtidos e armazenados ao longo de séculos. Às vezes, sem a ajuda de nenhum registro escrito e quase sempre a olho nu ou, no máximo, com o auxílio de poucos instrumentos rudimentares.
PalmeiraUm deles é o egípcio "merkhet", um simples talo de palmeira com uma abertura na ponta, que ajudava o protoastrônomo faraônico (quase sempre um sacerdote) a enquadrar as estrelas que estava observando. Os maias, outro povo famoso pela obsessão com o domínio celeste, tinham um instrumento parecido.Para Magli, boa parte dos grandes monumentos do passado usou esse conhecimento astronômico, em especial o associado com os ciclos anuais ou plurianuais do Sol, da Lua e das principais estrelas, para produzir o que ele chama de "sacred landscapes" (algo como "ambientes sagrados") ou "powerscapes" ("ambientes de poder", trocadilho com "landscape").
Segundo ele, é preciso imaginar os grandes monumentos regidos por alinhamentos astronômicos -as pirâmides de Gizé, no Egito, o círculo de pedra de Stonehenge, no Reino Unido, o "observatório" de El Caracol, na cidade maia de Chichén Itzá, entre outros-, como forma de reproduzir na Terra os eventos celestes. Para os povos que os criaram (em especial as elites que bancavam as construções), também uma forma de canalizar o poder do firmamento em momentos-chave.
Ainda que faraós ou reis maias não acreditassem realmente na comunhão entre soberano e poderes cósmicos, o resultado visual tinha, no mínimo, uma teatralidade impactante, resultando no que Magli chama de hierofania, ou seja, uma manifestação do sagrado.Um dos exemplos mais interessantes envolve o templo principal de Abu Simbel, construído a mando do faraó Ramsés 2º (1279 a.C.-1213 a.C.).
O templo está voltado para o leste. Encarapitados no alto de sua fachada, babuínos esculpidos se voltam para a aurora, com as patas da frente erguidas em sinal de adoração. Todos os anos, em apenas dois dias do ano -22 de fevereiro e 22 de outubro, datas cujo significado simbólico escapa aos estudiosos de hoje-, os raios do Sol nascente atravessam com precisão os corredores que conduzem à capela principal do templo e iluminam, nesta ordem, as estátuas de Amon-Rá, do faraó e de Rá-Horakhti. O design tem o cuidado de evitar que a luz atinja a estátua de Ptah, a única divindade não-solar do quarteto (já que o soberano egípcio também era considerado um deus solar encarnado).Há uma série de outros designs engenhosos como esses espalhados mundo afora, com destaque especial para técnicas que "canalizam" os raios solares em eventos como os solstícios de verão e inverno.
O livro peca apenas quando Magli avança um pouco o sinal com a própria tese, dizendo-se confiante de que as estátuas da ilha de Páscoa ou as linhas de Nazca também correspondem a alinhamentos astronômicos, quando há poucos dados sólidos sobre esses casos. É normal: olhar estrelas deixa qualquer um empolgado.

REINALDO JOSÉ LOPES
Folha de são Paulo, 14.03.2010

LIVRO - "Mysteries and Discoveries of Archaeoastronomy" de Giulio Magli Springer, 444 págs., US$ 27,50

sábado, 5 de setembro de 2009

A assimetria criadora

Na semana passada, escrevi sobre a impossibilidade de chegarmos a uma "teoria final", isto é, a uma descrição científica completa da Natureza. Falei de como nosso conhecimento do mundo depende daquilo que podemos medir e de como nossos instrumentos, mesmo que sempre mais precisos, terão sempre os seus limites. Esse tema, e o da coluna de hoje e a do próximo domingo, são elaborados em detalhe no livro que lanço no próximo dia 12. Seu título sugere já minha posição: "Criação Imperfeita: Cosmos, Vida e o Código Oculto da Natureza".
Ao escolher o adjetivo "imperfeita" para categorizar a Criação -subentendida aqui como o conjunto do que existe no Universo- me distancio da expectativa dos que defendem uma teoria final, ou mesmo uma teoria unificada das forças entre os componentes da matéria, que pressupõe tanto uma ordem matemática que descreve o mundo em que vivemos quanto uma ciência capaz de descrevê-la.Uma teoria única que descreve o mundo, refletindo uma unidade por trás de todas as coisas, expressa o que podemos chamar de monoteísmo racional: suas origens nos remetem aos filósofos da Grécia Antiga e foram implantadas na ciência durante a Renascença através da obra de gigantes como Copérnico, Kepler e Newton.
Hoje, cientistas frequentemente referem-se à "mente de Deus", mesmo que metaforicamente, para descrever sua crença numa ordem racional por trás de todas as coisas, baseada em simetrias matemáticas. Mas será isso o que a Natureza está nos dizendo? Será que temos evidência de que a Natureza seja mesmo simétrica, de que existe uma ordem fundamental por trás da incrível diversidade que vemos no mundo?Ao falarmos sobre ciência temos de nos lembrar de como ela funciona. As ciências naturais dependem fundamentalmente do confronto entre teoria e observação. É esse confronto que diferencia ciência de filosofia. Portanto, hipóteses científicas necessitam de uma validação empírica, de uma confirmação experimental.
Não há dúvida de que essa confirmação pode demorar muito, às vezes até mesmo décadas. Mas, mais cedo ou mais tarde, ela tem que vir. Teorias que não podem ser testadas, ou que podem ser convenientemente redefinidas de modo a escapar constantemente a precisão dos instrumentos de medida, são vistas com suspeita pela comunidade científica.
O uso de simetrias continuará sendo importante na descrição do mundo; mesmo que planetas e estrelas não sejam esferas perfeitas, a aproximação em geral é válida. Outras simetrias aparecem na descrição das partículas e suas interações. O problema surge quando simetria deixa de ser uma ferramenta que usamos nos modelos que construímos para descrever o mundo e se torna dogma. Simetria passa a ser equacionada com beleza e beleza com verdade. Esse paradigma é falso.
Existem vários exemplos possíveis para ilustrar que a Natureza é simétrica. Um deles é a teoria que descreve fenômenos elétricos e magnéticos.
Outro é a teoria que "unifica" as interações eletromagnéticas e as interações nucleares fracas: acima de uma determinada energia, as duas passam a se comportar de forma semelhante.
Porém, uma análise mais detalhada demonstra que essas duas unificações são incompletas. Em ambos os casos, existem assimetrias que persistem e que são compatíveis com as observações. De fato, a física moderna nos ensina que assimetrias e imperfeições são as responsáveis pela geração de estruturas complexas no cosmo, dos átomos às células. Um Universo simétrico e perfeito seria vazio, sem matéria ou vida.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Sonhos de uma teoria final

Em 1992, o vencedor do Nobel de física, Steven Weinberg, publicou um livro com o título da coluna de hoje. Nele, Weinberg expressou a visão de que, por trás da aparente diversidade do mundo natural, existe uma união que pode ser revelada por meio das leis da física. Segundo Weinberg, todas as manifestações do mundo material podem ser expressas através de leis quantitativas que derivam de uma teoria que explica tudo o que existe, a Teoria Final. Seria o triunfo definitivo do reducionismo.
A ideia não é nada nova. Suas origens são bem mais antigas do que a própria ciência ou mesmo a filosofia ocidental. Em religiões monoteístas, o mundo e seus habitantes são criação de um Deus. Se tudo vem de Deus, tudo tem a mesma origem. Essa unidade aparece mesmo em crenças onde não existe uma divindade central, como o conceito de Brahma no politeísmo hindu, ou na figura do Buda, no budismo. Com o desenvolvimento das rotas de comércio entre a Ásia e a Europa no século 6º a. C., essas ideias influenciaram os primeiros filósofos da Grécia Antiga, os pré-socráticos.Tales, o primeiro deles, instituiu a ideia de que tudo o que existe no mundo é feito de um único tipo de matéria, propondo assim uma unificação material. "Tudo é água", disse ele, sugerindo que as diversas expressões da matéria revelam-se nas propriedades da água, sempre transitória.
Esse monismo, a noção de que a diversidade aparente das coisas é ilusória e de que existe uma unidade fundamental, é o conceito-chave da busca pelo "campo unificado", a expressão moderna da Teoria Final.
Na física, teorias unificadas se referem apenas aos constituintes fundamentais da matéria, as chamadas partículas elementares, como o elétron, os quarks (integrantes dos prótons e nêutrons) e suas interações.
Seria ingênuo supor que um conhecimento das partículas de matéria e das forças que elas exercem umas sobre as outras poderia dizer algo sobre o clima terrestre, o funcionamento do cérebro ou a duplicação de DNA. Essas questões têm de ser abordadas através de outros métodos, expressos através de leis muito diferentes que regem esses domínios específicos.
Mas, mesmo dentro do seu limite de atuação, será que a noção de que podemos chegar a uma teoria final da matéria e de suas propriedades faz sentido? Tudo o que sabemos hoje sobre as partículas e suas forças está no Modelo Padrão: existem 12 tipos de partículas de matéria e quatro forças entre elas: gravidade, eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca.
Uma teoria unificada da matéria demonstraria que essas forças são, na verdade, manifestação de uma só. Essa unificação só apareceria em altíssimas energias, muito além do que podemos testar com experimentos atuais. Vamos supor que uma teoria unificada dessas forças exista, quem sabe uma versão futura da teoria das supercordas. Eu diria que mesmo essa teoria jamais poderia ser considerada uma teoria final. E por quê?Porque sabemos apenas aquilo que podemos medir. Todo o conhecimento científico que temos do mundo natural depende dos nossos instrumentos de observação. Mesmo que esses instrumentos avancem em sua precisão, jamais poderão ter precisão perfeita. Existem barreiras tecnológicas e mesmo conceituais para isso. Sendo assim, jamais poderemos conhecer a totalidade dos fenômenos materiais para nos certificar de que nossa teoria cobre tudo o que existe. Estamos cercados de uma escuridão perene, que demarca o limite do que sabemos sobre o mundo. Uma teoria final significaria um conhecimento absoluto, o que é uma impossibilidade. É hora de aceitarmos nossas limitações.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Stevie Wonder, Lucrécio e o medo

Estamos cercados por uma escuridão perene

O que Stevie Wonder e Lucrécio, o poeta romano que escreveu "A Natureza do Universo", têm em comum? Mais do que você imagina. Na semana passada, enquanto corria perto da minha casa, ouvi a música "Superstition", de Stevie Wonder. O refrão me chamou a atenção: "Quando você acredita em coisas que não entende, então você sofre; a superstição não é o caminho". Eis o que Lucrécio escreveu sobre o mesmo tópico, mais de 2.000 anos atrás: "As pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas por trás das coisas que acontecem na Terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus".
Lucrécio estava propondo um novo modo de pensar o mundo, baseado na filosofia atomística dos pré-socráticos Leucipo e Demócrito. "Pense", diria Lucrécio, "tente encontrar explicações para os fenômenos naturais dentro da própria natureza; não é necessário atribuí-los a causas sobrenaturais". A canção de Stevie Wonder diz algo semelhante, de modo bem mais popular e divertido.
Com a chegada da ciência, os mecanismos da natureza tornaram-se mais transparentes. O papel de Deus como criador e controlador do mundo foi diminuindo de importância: a natureza seguia certas leis racionais, que os homens podiam descobrir. Claro, existiam muitas questões em aberto: a morte, a vida, o mistério da alma e o da criação do mundo.
No final do século 18, a fixação iluminista pela razão começou a falhar. Os românticos acusaram os cientistas de tirarem o encanto da natureza com suas equações, de "desfiarem o arco-íris", nas palavras do poeta John Keats. Na verdade, as coisas não eram tão simples; como escreveu Richard Holmes no excelente "A Era do Encanto" (do inglês "The Age of Wonder"), os românticos tinham enorme fascínio pela ciência, especialmente quando lidava com as questões mais profundas. Esse é o mesmo fascínio pela ciência que atrai o público hoje. (E, claro, muitos cientistas também.) Mesmo que a tecnologia digital tenha uma influência muito maior no cotidiano, livros sobre buracos negros e o Big Bang vendem bem mais do que os sobre as maravilhas tecnológicas.
Vemos mistérios no céu e na terra e queremos desvendá-los. Será que a ciência pode dar cabo dessa missão? Será que pode explicar "tudo"?
Como argumento em detalhe em meu novo livro "Criação Imperfeita: Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza", que sai em meados de março, a ciência jamais poderá explicar a realidade por completo. Uma das razões é que simplesmente não podemos conhecer tudo o que existe.
O que sabemos do mundo material é obtido de duas formas: por meio dos nossos sentidos -vemos o Sol, sentimos calor, vemos as cores, ouvimos sons... (mesmo aqui existe um problema, já que nossa percepção da realidade pode ser distorcida)- e, de forma indireta, com nossos instrumentos.
Os limites do conhecimento dependem da precisão desses instrumentos que, apesar de aumentar sempre, é limitada. Ou seja, existe uma região "lá fora", além do que podemos medir, além do que podemos saber. Mesmo que o círculo do conhecimento cresça sempre, essa região sempre existirá. Estamos cercados por uma escuridão perene. Nossas teorias contam apenas parte da história. Será que devemos então abandonar Stevie Wonder e Lucrécio e abraçar o medo? Não! Quando paramos de perguntar, estagnamos: o círculo do conhecimento passa a nos apertar. Se paramos de perguntar, o desconhecido deixa de ser um desafio e transforma-se num monstro. Talvez nunca saibamos todas as respostas; mas, ao tentar, permanecemos livres.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O estranho multiverso


Para quem acha que o nosso Universo (ao menos a parte que podemos ver e estudar com nossos instrumentos) é já bem complicado, gostaria de apresentar o multiverso. Na melhor tradição borgiana, o multiverso é como a Biblioteca de Babel: imagine uma entidade parteira de universos de todos os tipos, alguns absurdamente diferentes do nosso, outros semelhantes. Em alguns, as leis da natureza são distintas das daqui. Em outros, são as mesmas, mas as partículas de matéria têm massas e carga elétrica diferentes.No multiverso, o tempo não existe. Existe apenas a coexistência dos muitos universos, cada qual com suas propriedades. Universos vão surgindo aleatoriamente, sem qualquer causa determinada, cada qual com seu espaço e seu tempo. Dentre eles está o nosso, especial por ter sido capaz de gerar entidades vivas.
O leitor deve estar se perguntando, com razão, de onde vem uma ideia dessas. Afinal, não é todo dia que ouvimos coisas desse tipo, um multiverso repleto de universos. Antes de mais nada, devo afirmar que a ideia habita, ainda, os cantos mais esotéricos das regiões mais especulativas da física teórica: não sabemos se o multiverso existe. Nem é claro que seja possível saber da sua existência, o que faz a física se confrontar com dilema um tanto inquietante: se uma ideia não pode ser confirmada, será que faz parte do cânone da ciência?
Deixando essa questão inconveniente de lado, existem duas correntes de pensamento que levam à ideia do multiverso. Hoje falaremos de uma delas, a hipótese das supercordas, candidata a uma teoria que unificaria as quatro forças fundamentais da natureza, usando um conceito revolucionário: as entidades básicas da matéria não são partículas submicroscópicas mas, sim, pequenas "cordas" que, ao vibrar de diferentes formas, geram as partículas que compõem tudo o que existe. A analogia aqui é com uma corda de violão, que pode gerar notas diferentes vibrando com comprimentos diversos: cada "nota" seria uma partícula.
As supercordas vêm sendo exploradas seriamente desde 1984. Apesar da falta total de confirmação experimental, muitos acreditam que sejam o novo Eldorado da física, uma revolução em andamento. Dentre as suas peculiaridades, a teoria só faz sentido se formulada em nove dimensões espaciais, portanto seis a mais do que as que vemos à nossa volta.
Para justificar a invisibilidade dessas dimensões a mais, é suposto que sejam minúsculas, indetectáveis pelos nossos instrumentos. O ponto relevante aqui é que geometrias com seis dimensões podem ser muito complicadas. Cada geometria gera uma física diferente quando vista em três dimensões. Nossa realidade material seria determinada pelo arranjo geométrico dessas seis dimensões ocultas. A existência de um "superespaço" é imaginada, o lar de todas as configurações geométricas possíveis dessas seis dimensões extra, cada qual gerando uma realidade física diferente. O nosso mundo corresponde a uma única solução, a uma geometria específica. O conjunto dessas geometrias coexistindo no superespaço, em torno de 10500 delas, é o multiverso.
Ninguém sabe ainda como determinar as propriedades desse multiverso. Cá entre nós, talvez nem seja possível determinar essas propriedades. Mas se for levado a sério, o multiverso representa um desafio: como explicar a existência do nosso Universo no meio dessa paisagem semi-infinita de universos? Será que nós, seres humanos, somos especiais? Ou será que somos apenas um acidente cósmico? Aqui, as opiniões divergem e meu espaço para hoje acaba... rso

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"