domingo, 11 de julho de 2010

Sobre o natural e o sobrenatural

Semana passada, escrevi sobre a importância do não saber, de como o conhecimento avança apenas quando parte do não saber, isto é, do senso de mistério que existe além do que se sabe.


A questão aqui é de atitude, do que fazer frente ao desconhecido. Existem duas alternativas: ou se acredita na capacidade da razão e da intuição humana (devidamente combinadas) em sobrepujar obstáculos e chegar a um conhecimento novo, ou se acredita que existem mistérios inescrutáveis, criados por forças além das relações de causa e efeito que definem o normal.

Em outras palavras, ou se vive acreditando em causas naturais por trás do que ocorre no mundo, ou se acredita em causas sobrenaturais, além do explicável.

Quando falo sobre isso, com frequência me perguntam se não seria possível uma conciliação entre as duas: parte do mundo sendo natural e parte sobrenatural. Não vejo como isso poderia ser feito.

No meu livro recente "Criação Imperfeita", argumentei que a ciência jamais será capaz de responder a todas as perguntas. Sempre existirão novos desafios, questões que a nossa pesquisa e inventividade não são capazes de antecipar.

Podemos imaginar o conhecido como sendo a região dentro de um círculo e o desconhecido como sendo o que existe fora do círculo. Não há dúvida de que à medida em que a ciência avança, o círculo cresce. Entendemos mais sobre o universo, sobre a vida e sobre a mente. Mas mesmo assim, o lado de fora do círculo continuará sempre lá. A ciência não é capaz de obter conhecimento sobre tudo o que existe no mundo.

E por que isso? Porque, na prática, aprendemos sobre o mundo usando nossa intuição e instrumentos. Sem telescópios, microscópios e detectores de partículas, nossa visão de mundo seria mais limitada.

A tecnologia abre novas janelas para um mundo que, outrossim, permaneceria invisível à nossa limitada percepção da realidade. Porém, tal como nossos olhos, essas máquinas têm limites. Existem outros, ligados à própria estrutura da natureza, como o princípio de incerteza da mecânica quântica. Mas eles podem mudar com o avanço da ciência.

Essa imagem, de que o conhecido existe em um círculo e que muito do mundo permanece obscuro pode gerar confusão. Ou ainda pode ser manipulada por aqueles que querem inculcar nas pessoas um senso de que estamos cercados por forças ocultas que, de algum modo, controlam nossas vidas. É aqui que entram as alternativas que mencionei.

Parafraseando o poeta romano Lucrécio, as pessoas vivem aterrorizadas pelo que não podem explicar. Ser livre é poder refletir sobre as causas dos fenômenos sem aceitar cegamente "explicações inexplicáveis", ou seja, explicações baseadas em causas além do natural.

Essa escolha exige coragem. Implica na aceitação de que certos aspectos do mundo, apesar de inexplicáveis, não são sobrenaturais.

Não é fácil ser coerente quando algo de estranho ocorre, uma incrível coincidência, a morte de um ente querido, uma premonição, algo que foge ao comum. Mas como dizia o grande físico Richard Feynman, "prefiro não saber do que ser enganado". E você?

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

domingo, 4 de julho de 2010

A importância de não saber

Vivemos em tempos privilegiados. Ao menos no que diz respeito à cosmologia e à física de partículas. Para um cientista, nada mais empolgante do que ter em mãos novas tecnologias capazes de testar teorias. Às vezes, são décadas antes que máquinas possam investigar realidades distantes do nosso dia a dia. Mas, um dia, as ideias são testadas. E aí, é a glória ou a lata de lixo.


A história da cosmologia nos últimos cem anos ilustra bem isso. Albert Einstein foi o primeiro a propor um modelo para o cosmo, baseado em sua teoria da gravidade, a relatividade geral. Isso se deu em 1917, antes de ele ter qualquer razão para supor um Universo que muda com o tempo. Daí ter proposto o mais simples, um cosmo estático e esférico.

Entre 1917 e 1929, ano em que Edwin Hubble descobriu a expansão cósmica, vários modelos surgiram, com todo o tipo de comportamento. Em 1922, o russo Alexandre Friedmann sugeriu que o cosmo poderia expandir-se para sempre ou chegar a um tamanho máximo e se contrair. Daí, poderia alternar expansão e contração indefinidamente.

Einstein não gostou das ideias de Friedmann. Mas em 1931 acabou se convencendo, após visitar Hubble no Observatório do Monte Wilson, nos EUA. Precisou de dados concretos para mudar de ideia.

O próximo episódio ocorreu no final da década de 1940. Três físicos ingleses, desiludidos com a ideia de que o Universo poderia ter tido um começo e, portanto, uma história, propuseram o "estado padrão", no qual o Universo era eterno. Com isso, queriam se livrar da conexão inevitável com o Gênesis. Para ser compatível com a expansão, sugeriram que matéria era criada para compensar sua diluição, mantendo o cosmo num estado padrão.

No meio tempo, George Gamow, físico russo residindo nos EUA, propôs o modelo do Big Bang, no qual o cosmo surge de uma singularidade no passado. Junto com Ralph Alpher e Robert Hetman, calculou que deveria existir uma radiação por toda parte, um fóssil de quando os primeiros átomos de hidrogênio foram formados. Em 1965, a radiação primordial foi encontrada e o modelo do estado padrão, que não podia explicá-la, foi abandonado.

Hoje, temos duas observações ainda não explicadas. Primeiro, que galáxias são circundadas por um véu de matéria escura, um tipo de matéria que não produz a própria luz e interage apenas gravitacionalmente com a matéria comum. Segundo, que a expansão cósmica está acelerando. O culpado dessa pressa celeste tem um nome, "energia escura". Mas só isso.

Sabemos que a matéria escura representa 23% do material cósmico, enquanto que a energia escura representa cerca de 70%. Mas não sabemos do que são feitas. Imagino que a energia escura esteja relacionada com o vazio. Pois é, é possível que a componente dominante do Universo venha do nada. Devido ao princípio da incerteza da física quântica, não existe o vazio: flutuações de energia vindas do nada podem criar matéria, numa dança perpétua de criação e destruição.

Em ciência, é bom não saber. Precisamos de dados para decidir. Afinal, experimentos sem teoria são prosaicos e teorias sem experimentos são cegas. Acho que Einstein concordaria com isso.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"