domingo, 18 de abril de 2010


Totem e tabu

História das Crenças e das Ideias Religiosas", relançado pela Zahar 30 anos depois de sua primeira publicação em português em uma edição revisada, é a primeira parte de uma obra monumental em três volumes do historiador romeno Mircea Eliade (1907-86).Ele refaz a cronologia das diferentes manifestações religiosas nas sociedades humanas desde o homem da Pré-História até o surgimento do culto a Dionísio na Grécia, passando pelas ideias religiosas do Egito, de Israel, do Irã e dos rituais védicos na Índia antes de Buda.

Nesse sentido não se pode negar que se trata de uma obra de referência, embora de difícil leitura. A erudição, o vasto escopo de tempo e de culturas que percorre e o extenso volume de documentos e autores, cujas ideias sintetiza e analisa criticamente, tornam este livro presença obrigatória na estante dos estudiosos dos fenômenos religiosos.Apesar de sua formação intelectual de filósofo, Eliade ficou mais conhecido como professor de história comparada das religiões. Sua obra pode ser definida como uma tentativa de compreender a variedade das formas religiosas através dos tempos e das culturas por meio de uma perspectiva universal.

Para realizar tal proeza, o autor parte do pressuposto da unidade fundamental dos fenômenos religiosos. Mais ainda, para ele o sagrado é um elemento da estrutura profunda e indivisível do espírito humano, e não uma fase particular na história da consciência. Desse modo, o ser humano é, necessariamente, ser religioso.Mas o sagrado em Eliade não implica a crença em Deus ou em espíritos superiores. A inovação de sua abordagem reside em conceber o sagrado como o objeto intencional da experiência humana, como fonte de toda significação que dá ao homem consciência de existir no mundo. A religião, como experiência do sagrado, revela o mundo. A hierofania, manifestação física do sagrado, se manifesta frequentemente na história por meio de símbolos, mitos e rituais.

Em seus trabalhos anteriores, o autor procurou descrever a morfologia dessas manifestações: o modo como a expressão do sagrado cria o simbolismo do centro, como os rituais põem em evidência a não homogeneidade do espaço, como os mitos da criação referem-se ao sacrifício, essa violência primordial que tem o poder de animar o mundo.

Já neste trabalho, de sua fase madura, ele examina as diferenças na experiência religiosa que se explicam pela história: a intenção escatológica do sacrifício no zoroastrismo, os ritos funerários e as mitologias da morte no Irã, o mito central de Indra, que narra seu combate vitorioso contra o dragão Vrtra, que retinha as águas no oco da montanha, etc.SalvaçãoPara Eliade os mitos tratam do sofrimento imposto aos homens pela história. A questão do mal é colocada, portanto, não no plano filosófico da condição humana: trata-se de combater o mal inscrito na própria atividade humana. Cada herói repete o gesto arquetípico da luta primeira entre o bem e o mal. É graças a essa concepção mítica que o homem pode suportar as grandes pressões da história sem se desesperar.Essa defesa do tempo mítico como libertador das angústias do ser humano ameaçado pelas contingências do mundo dá um caráter soteriológico -parte da teologia que trata da salvação do homem- a sua abordagem.

A ruptura do círculo mágico do eterno retorno promovida pela invenção da história seria, para o autor, a fonte de todas as infelicidades humanas. Nesse sentido, sua abordagem fenomenológica das hierofanias, inspirada no teólogo protestante alemão Rudolf Otto [1869-1937], se quer um combate crítico contra a desmistificação moderna do sagrado.

As análises que explicam o religioso pela psiquiatria, pela sociologia ou pela antropologia reduziriam, segundo ele, os fatos religiosos a fenômenos de outra ordem. A história das religiões de Mircea Eliade tem como fim a possibilidade de transformar a condição humana pela anulação da história.

Embora não se possa deixar de reconhecer a influência capital deste autor e de sua obra no campo da história das religiões, a maior parte de seus críticos aponta para a fragilidade acadêmica de seu trabalho de historiador, que postula a existência de um plano transcendente e a-histórico do sagrado.

A admissão da historicidade dos mitos, enquanto atualizações do sagrado no mundo por meio das hierofanias e dos ritos, foi sem dúvida uma revolução para os pensadores católicos, que os consideravam até recentemente uma realidade típica do paganismo.No entanto, a ampla aceitação de sua obra por teólogos, missionários e religiosos de toda sorte indicam que as teses de Eliade relativas à universalidade dos mitos e dos comportamentos simbólicos deixaram de ser questões intelectualmente instigantes para a antropologia contemporânea e se tornaram um manual do misticismo do presente.

PAULA MONTERO é professora titular de antropologia na USP e coorganizadora do livro "Retrato de Grupo" (Cosac Naify). Folha de São Paulo, 18.04.2010HISTÓRIA DAS CRENÇAS E DAS IDEIAS RELIGIOSAS Autor: Mircea Eliade Tradução: Roberto Cortes de Lacerda Editora: Zahar (tel. 0/ xx/21/2108-0808)

Dançando com os deuses

Estava mais do que na hora de usar a lupa da psicologia evolutiva para elucidar as origens da religião. A fé, afinal, é um prato apropriado para o cardápio dos que tentam explicar a mente com base na teoria evolutiva. Ela parece ser um universal humano, ou seja, aquele tipo de comportamento presente em qualquer sociedade, no tempo e no espaço. E, se é um traço universal, provavelmente foi favorecido e mantido pela seleção natural. O raciocínio funciona. Mas o livro "The Faith Instinct" vai com sede demais a esse pote.

Que o leitor não entenda mal. A obra do britânico Nicholas Wade, jornalista de ciência do "New York Times", consegue alinhavar de forma clara as principais pesquisas sobre a origem do "instinto da fé" do título. O problema é que esse tipo de estudo ainda está engatinhando e, na ânsia de apresentar um cenário evolutivo "vencedor", que deixe claro por que a religião surgiu, Wade passa por cima das explicações alternativas, das nuances e do que não se encaixa em sua visão pré-fabricada do tema. O resultado são generalizações um bocado especulativas, que o autor martela capítulo após capítulo, na esperança de que o leitor acabe por aceitá-las.

SacolejoConforme argumenta Wade, quando o comportamento humano moderno surge (entre 50 mil e 100 mil anos atrás), as manifestações religiosas parecem vir a reboque. As primeiras formas de arte e de ferramentas complexas aparecem lado a lado com coisas como funerais deliberados, incluindo "oferendas" (adornos e ossos de animais), e pinturas que retratam misteriosos seres metade pessoas e metade animais. Seriam indícios de uma crença no pós-vida e na capacidade mística de transitar entre os reinos humano, animal e espiritual, como ainda fazem os xamãs dos povos tradicionais de hoje.São justamente esses povos, em especial os aborígines australianos e os san (ou bosquímanos) do sul da África, que inspiram o autor a dar seu passo seguinte. Como os rituais das tribos modernas de caçadores-coletores estão fortemente ligados a danças comunais, nas quais todo o grupo participa durante horas a fio, com resultados como transes e visões místicas, Wade propõe que a "religião ancestral" da humanidade era esse tipo de dança.

Aliás, para ele, música, dança, linguagem e religião teriam evoluído juntas, formando um complexo de comportamentos cuja principal função era garantir a coesão social de cada grupo, para que fosse possível superar outras tribos em combate. Os transes gerados pela dança exaustiva levariam à crença nas entidades sobrenaturais "vistas" durante o êxtase e, de quebra, produziriam um forte senso de união entre os participantes do sacolejo. Os grupos mais afinados com essa propensão ao transcendente teriam obtido uma considerável vantagem reprodutiva e de sobrevivência em relação às tribos menos extáticas, até a religião se propagar pela espécie.A reconstrução da "religião dançarina" original até faz sentido diante dos (poucos) indícios disponíveis, mas Wade entra em terreno dúbio quando aposta, juntamente com uma minoria de biólogos evolutivos, que a seleção natural poderia atuar no nível de grupos, e não no de indivíduos, como diz a maior parte dos cientistas hoje.O problema aqui é que grupos humanos -em especial tribos em guerra, como no cenário traçado pelo livro- não se reproduzem em bloco, mas como indivíduos. Supostas tendências genéticas "religiosas", que levariam ao sacrifício em batalha em nome do "bem maior", seriam simplesmente perdidas com a morte de seus possuidores. Desse ponto de vista, a seleção natural seria implacável contra os religiosos, e não a favor deles. De fato, os grupos com maior proporção de religiosos poderiam até obter mais sucesso na competição com outras tribos. Mas, paradoxalmente, as chances de multiplicação do "gene da fé" seriam muito baixas.

A rigor, seria perfeitamente possível traçar uma análise evolutiva com base nesse princípio: a religião, enquanto "unidade" cultural, é que estaria sendo selecionada nos confrontos, e não os corpos e genes de seus fiéis. Contudo, ao adotar um paradigma muito rígido, Wade nem chega a mencionar essa possibilidade.Ele também quase não toma conhecimento da outra grande vertente das pesquisas sobre a evolução da religiosidade, que encara a crença no sobrenatural como um subproduto de outras capacidades mentais humanas as quais, essas sim, teriam sido moldadas pela seleção natural, tais como a propensão para detectar outras mentes no mundo circundante.A análise que Wade faz da transformação das religiões no mundo pós-Idade da Pedra também é questionável. Ele associa, por exemplo, o "fim da dança" (ou seja, dos rituais comunais e igualitários dos caçadores-coletores) com o surgimento da agricultura e da desigualdade social. Nesse ponto, a ascensão de castas sacerdotais teria levado à monopolização do sagrado. O autor esquece, porém, que sociedades com considerável grau de hierarquização e complexidade, como a grega antiga, eram um bocado relaxadas quanto ao ofício sacerdotal -sem escrituras sagradas, rituais de ordenação ou mesmo monopólio dos sacrifícios de animais.
Apesar de tudo, a conclusão do livro talvez tenha alguma permanência: um apelo para que as religiões saibam incorporar o que a ciência descobriu sobre a natureza e a evolução do homem em suas próprias narrativas do sagrado.

LIVRO - "The Faith Instinct", de Nicholas Wade; Penguin Press, 310 págs., US$ 25,95
REINALDO JOSÉ LOPES – Folha de São Paulo, 18.04.2010

domingo, 11 de abril de 2010

Mitos, ciência e religiosidade

Começo hoje com a definição de mito dada por Joseph Campbell, uma das grandes autoridades mundiais em mitologia: "Mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre". Sabemos que mitos são narrativas criadas para explicar algo, para justificar alguma coisa. Na prática, não importa se o mito é verdadeiro ou falso; o que importa é sua eficiência.

Por exemplo, o mito da supremacia ariana propagado por Hitler teve consequências trágicas para milhões de judeus, ciganos e outros. O mito que funciona tem alto poder de sedução, apelando para medos e fraquezas, oferecendo soluções, prometendo desenlaces alternativos aos dramas que nos afligem diariamente. A fé num determinado mito reflete a paixão com que a pessoa se apega a ele. No Rio, quem acredita em Nossa Senhora de Fátima sobe ajoelhado centenas de degraus em direção à igreja da santa e chega ao topo com os joelhos sangrando, mas com um sorriso estampado no rosto. As peregrinações religiosas movimentam bilhões de pessoas por todo o mundo. É tolo desprezar essa força com o sarcasmo do cético. Querendo trazer a ciência para um número maior de pessoas, eu me questiono muito sobre isso. Como escrevi antes neste espaço, os que creem veem o avanço científico com uma ambiguidade surpreendente: de um lado, condenam a ciência como sendo materialista, cética e destruidora da fé das pessoas. "Ah, esses cientistas são uns chatos, não acreditam em Deus, duendes, ETs, nada!"

De outro, tomam antibióticos, voam em aviões, usam seus celulares e GPSs e assistem às suas TVs digitais. Existe uma descontinuidade gritante entre os usos da ciência e de suas aplicações tecnológicas e a percepção de suas implicações culturais e mesmo religiosas. Como resolver esse dilema?

A solução não é simples. Decretar guerra à fé, como andam fazendo alguns ateus mais radicais, como Richard Dawkin, não me parece uma estratégia viável. Pelo contrário, vejo essa polarização como um péssimo instrumento diplomático. Como Dawkins corretamente afirmou, os extremistas religiosos nunca mudarão de opinião, enquanto um cientista, diante de evidência convincente, é forçado eticamente a fazê-lo. Talvez essa seja a distinção mais essencial entre ciência e religião: o ver para crer da ciência versus o crer para ver da religião.

Aplicando esse critério à existência de entidades sobrenaturais, fica claro que o ateísmo é radical demais; melhor optar pelo agnosticismo, que duvida, mas não nega categoricamente o que não sabe. Carl Sagan famosamente disse que a ausência de evidência não é evidência de ausência. Mesmo que estivesse se referindo à existência de ETs inteligentes, podemos usar o mesmo raciocínio para a existência de divindades: não vejo evidência delas, mas não posso descartar sua existência por completo, por mais que duvide dela. Essa coexistência do existir e do não-existir é incômoda tanto para os céticos quanto para os crentes. Mas talvez seja inevitável.

A ciência caminha por meio do acúmulo de observações e provas concretas, replicáveis por grupos diferentes. A experiência religiosa é individual e subjetiva, mesmo que, às vezes, seja induzida em rituais públicos. Como escreveu o psicólogo americano William James, a verdadeira experiência religiosa é espiritual e não depende de dogmas. Apesar de o natural e o sobrenatural serem irreconciliáveis, é possível ser uma pessoa espiritualizada e cética.

Einstein dizia que a busca pelo conhecimento científico é, em essência, religiosa. Essa religião é bem diferente da dos ortodoxos, mas nos remete ao mesmo lugar, o cosmo de onde viemos, seja lá qual o nome que lhe damos.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "Criação Imperfeita"

sábado, 10 de abril de 2010

Arthur Koestler - o sonâmbulo visionário



Arthur Koestler alternou toda sua vida entre o homem de ação e o homem de letras. Nascido em Budapeste, em 1905, estudou na Universidade de Viena antes de se tornar jornalista, Como correspondente estrangeiro viajou intensamente, visitando o Oriente Médio, Paris e Moscou. Em 1937, como representante do News Chronicle na Espanha, foi capturado pelas tropas de Franco e aprisionado sob sentença de morte. Foi finalmente libertado com intervenção do Governo Britânico e retornou a Londres. Durante a Guerra serviu na Legião Estrangeira e no Exército Britânico e em 1945 tornou-se Correspondente Especial para The Times na Palestina. Nos anos 1940 e começo dos anos 1950 era talvez o mais amplamente lido romancista político da época. Darkness at Noon2, considerado sua obra prima, foi publicado em 1940, seguido por Arrival and Departure (1943), Thieves in the Night (1946), A partir de 1956, mergulhou em questões de ciência e misticismo, passando a ter um grande número de seguidores entre os jovens The Age of Longing (1951) and The Call Girls (1972).... The Sleepwalkers (1959) é o primeiro livro de sua clássica trilogia sobre a mente humana, que continuou com The Act ofCreation (1964) e terminou com The Ghost in the Machine (1967) ... Entre seus outros livros estão The Yogi and the Comissar (1945), The Case of the Midwife Toad (1971), dois volumes autobiográficos, Arrow in the blue (1952) e The invisible writing (1954), e uma seleção de seus escritos com comentários do autor, sob o título Bricks to Babel (1980). Koestler recebeu o Sonning Prize da Universidade de Kopenhagen em 1968 e foi agraciado com vários doutorados honorários. Era Fellow da Royal Society of Literature da Royal Astronomical Society ... em três ocasiões foi indicado para o Prêmio Nobel. Arthur Koestler faleceu em 1983. Na verdade, defensor da eutanásia e sofrendo do Mal de Parkinson e de uma leucemia incurável, Koestler suicidou-se, juntamente com sua esposa à época, Cyntia Jefferies, doando seus bens a uma fundação destinada a pesquisas parapsicológicas .


Prof. Dr. Nilson José Machado, Universidade de São Paulo