domingo, 21 de novembro de 2010

Evitando o vazio

   SERÁ QUE PODEMOS contemplar o vazio absoluto? E se pudermos, será que tal coisa - a ausência de tudo- existe? O que definimos como o "nada" mudou radicalmente com o passar do tempo.
        A noção do vazio absoluto é desconfortável, provoca certa ansiedade. Queremos enchê-lo com algo.
    Já na Grécia Antiga, a questão incitava o debate. Parmênides dizia que o nada não existe e não faz sentido. Haveria apenas o Ser, que está em todos os lugares. Sua ausência significaria a existência do não Ser, que lhe parecia impossível.
       Contra essas ideias, os atomistas diziam que a realidade é composta de átomos movendo-se no vazio. Esses átomos podem se combinar para dar forma a tudo o que existe.
     Aristóteles discordava disso. Para ele, o vazio também era uma impossibilidade, mas seus argumentos eram mais concretos.
    Uma pedra cairá com velocidades diferentes num copo cheio de água ou de mel: quanto mais denso o meio, mais lento o movimento.
    Portanto, um meio vazio e com densidade zero permitiria velocidades infinitas, o que era um absurdo. Aristóteles postulou então a existência do éter, uma substância imutável que permeia o Cosmo.
     No século 17, Descartes afirmou também que um fluido preenchia o espaço, o que explicaria as órbitas dos planetas em torno do Sol: ao girar, o astro causava o giro do fluido que, por sua vez, fazia com que os planetas girassem.
     Newton mostrou que Descartes estava errado: tal fluido criaria uma fricção que causaria instabilidades nas órbitas planetárias. O espaço ficou vazio outra vez.
     Quando o escocês James Clerk Maxwell demonstrou, no século 19, que a luz era uma onda eletromagnética, teve de inventar um meio onde essa onda se propagasse. Afinal, ondas de água se propagam na água, e ondas de som, no ar. Maxwell supôs que um meio transparente, sem massa (para não atrapalhar as órbitas) e muito rígido (para permitir propagar ondas ultrarrápidas) enchia o cosmo. O éter acabou voltando. Apenas em 1905 Einstein demonstrou que o éter não é necessário, porque ondas de luz são capazes de se propagar no vácuo. O espaço ficou vazio outra vez. Durante o século 20, o conceito de campo substituiu o conceito de força e ação à distância. Todo corpo com massa cria um campo gravitacional à sua volta, que influencia outros corpos com massa. Toda carga elétrica cria um campo elétrico que influencia outras cargas etc.
      Os campos preenchem todo o espaço, criados por sua fontes. A realidade física é vista como sendo criada por campos e suas excitações. Elétrons, prótons, fótons são excitações de campos.
     Devido a flutuações típicas na escala atômica, essas partículas podem surgir até do vazio. O vazio absoluto não existe, pois sempre haverá uma energia de excitação no espaço, a agitação quântica.
    Essa energia pode criar matéria vinda do nada! Como foi descoberto em 1998, a expansão do Universo se acelera: galáxias se afastam mais rápido do que o esperado.
   A causa desse efeito é desconhecida, mas ganhou o nome de energia escura. É possível que venha dessa agitação quântica do espaço vazio. O éter, ou algo do tipo, voltou.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A realidade é como percebemos

SEMANA PASSADA, DESCREVI como a física moderna vê a realidade como sendo composta de várias camadas, cada qual com seus princípios e leis.

Isso vai contra o reducionismo mais radical, que diz que tudo pode ser compreendido partindo do comportamento das entidades fundamentais da matéria. Segundo esse prima, existem apenas algumas leis fundamentais. Delas, todo o resto pode ser determinado. Gostaria de retornar ao tema hoje, mas focando num outro aspecto dessa questão que é bem complicado: o que é realidade e como sabemos.

Começo contrastando os filósofos Hume e Kant. Para Hume, o conhecimento vem apenas do que captamos com nossos sentidos. Baseados nesta informação, construímos a noção de realidade. Portanto, uma pessoa que cresceu sem qualquer contato com o mundo externo e que é alimentada por soros não seria capaz de reflexão. Kant diria que existem intuições já existentes desde o nascimento, estruturas de pensamento que dão significado à percepção sensorial.

Sem elas, os dados colhidos pelos sentidos não fariam sentido.

Duas dessas intuições são as noções de espaço e de tempo: elas costuram a estrutura da realidade, conectando e dando sentido ao fluxo de informação que vem do mundo exterior. Uma mente com estruturas diferentes, portanto, teria uma noção diferente da realidade.

Kant não diz que o sensório não é importante. Para ele, mesmo que o conhecimento comece com a experiência externa, não significa que venha desta experiência. Precisamos do fluxo de informação sensorial, mas construímos significado partindo de nossas intuições: os dados precisam ser ordenados no tempo e arranjados no espaço.

Durante as primeiras décadas do século 20, duas revoluções forçaram uma reavaliação da ordem kantiana. A relatividade de Einstein combinou espaço e tempo. Deixaram de ser quantidades absolutas, tornando-se dependentes do observador.

O que é real para um pode não ser para outro. A teoria de Einstein restaura uma forma de universalidade, pois provê meios para que observadores diferentes possam comparar suas medidas de espaço e tempo.

A segunda revolução veio com a física quântica. Para nossa discussão hoje, seu aspecto mais importante é a relação entre o observador e o observado. Na época de Kant, a separação entre os dois era absoluta. No mundo quântico dos átomos e partículas, a natureza física de um objeto (se um elétron é uma partícula ou uma onda, por exemplo) depende do ato de observação.

Ou seja, as escolhas feitas pelo observador induzem a natureza física do que é observado: o observador define a realidade. E como a intenção do observador vem de sua mente, a mente define a realidade. A mente precisa ainda das intuições a priori para interpretar o real, mas ela participa desta interpretação.

A objetividade imparcial se torna, então, obsoleta, já que mente e realidade tornam-se inseparáveis. Se essa relação na camada quântica afeta outras camadas é ainda objeto de discussão.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Michel Onfray: a potência de existir (parte 1)

         Ando em dívida com este meu blog de filosofia. Há um projeto parado – Nietzsche e a Tragédia – e outro que precisa ser iniciado – a discussão do trabalho do francês Michel Onfray. A minha confluência astrológica de Gêmeos com Peixes é minha delícia e meu desespero, pois me leva a ter de três a cinco livros na cabeceira, todos em processo de leitura ou releitura, e, pior ainda, de áreas diferentes. Atualmente, há dois do Jung, este do Onfray, um do Drummond, um do William Wordsworth e dois do Quintana. Pelo visto, me superei porque a conta final dá sete!
           Mas nesta terça, feriado, tomei a decisão de terminar de ler o Rascunho que rodou a semana toda comigo e começar a postar sobre o livro do filósofo Michel Onfray, “A potência de existir – manifesto hedonista”. O projeto do Nietzsche, eu fico devendo, principalmente a mim, porque esses dois blogs que criei são muito mais uma forma de exercitar a escrita. Daí o conselho para que os leitores não esperem muito deles, não são nada além de exercícios de escrita e de apreciação de leituras.
           Bom, chega de tergiversações, vamos aos fatos. Em post anterior, encabecei a imagem do livro com o seguinte texto: “a revolta dionisíaca na filosofia libertária de Michel Onfray”. E quem é o autor? Ele mesmo se apresenta no prefácio intitulado “Autorretrato com criança”. Começa afirmando que “morri aos dez anos de idade, numa bela tarde de outono, numa luz que dá vontade de eternidade”. Então, o autor passa a relatar o período doloroso de quatro anos, entre os dez e os quatorze, em que foi entregue pelos pais a um orfanato de padres salesianos, localizado na Baixa Normandia.
          Antes disso, quer dizer, até os dez, o menino, filho de família muito pobre, viveu entregue à natureza na sua província natal de Chambois. “Antes de ler as Geórgicas eu as vivi, minha carne em contato direto com a matéria do mundo”, escreve Onfray. Sua dor na época, era o desprezo agressivo que sofria por parte de sua mãe, que, por sua vez, tinha sido abandonada seguidas vezes pela família natural e pelas famílias substitutas. O pai parece ter sido uma figura, um ser negado e silenciado, “...massacrado pela brutalidade de um trabalho extenuante de operário agrícola e pelas misérias de uma vida da qual nunca se queixava”.
         A mãe o entrega a um orfanato salesiano, nomeado pelo autor como Giel (composto lexical a partir dos termos franceses ‘gel’ (gelo) e fiel (fel)), em 1966. Onfray descreve a arquitetura do lugar, basicamente construído em granito escuro, como o projeto de uma construção carcerária, de um hospital ou quartel, cercado por oficina, estufa e uma fazenda para práticas agrícolas. O conjunto todo é maior que sua aldeia natal, contabilizando-se os seiscentos alunos mais os encarregados pelo ensino. Para o menino de dez anos, até então criado livre, aquilo lhe pareceu uma máquina opressora, uma ‘cloaca antropófaga’, em suas palavras. Nela, “carne e alma são vigiadas inclusive à distância, principalmente à distância”.
         Nesse prefácio, que seria apenas um relato biográfico, Onfray já começa a se posicionar filosoficamente. Sua recusa da dicotomia platônica entre corpo/alma aparece logo à quinta página quando, ao descrever o caráter opressor do edifício do orfanato, afirma: “Para um garoto de dez anos, do alto de seu um metro, encontrar-se nos braços desse edifício oprime o corpo, logo, a alma”. Emerge, também, com esse posicionamento, a defesa do hedonismo, a revolta dionisíaca.
        Do período no orfanato, Onfray relata humilhações freqüentes, falta de higiene e, conseqüente, horror ao corpo, trabalho exaustivo e disciplina rígida (“Não há um segundo sem um cheiro de terror.”), espancamentos e assédio sexual. A dor vivida nos tempos do orfanato brota nas palavras que compõem esse prefácio, demonstrando claramente as razões que silenciaram e postergaram por tantos anos essa escrita e essa releitura catárticas deste período da vida do autor. “Quatro anos, quatro invernos perpétuos, quatro vezes 252 dias de gelo e fel, mil dias diante do cadáver decomposto da minha infância. Aos quatorze anos, eu tinha mil anos – e a eternidade atrás de mim”.
        Neste prefácio catártico, doloroso e, às vezes, de uma ironia corrosiva, o autor também chama nossa atenção para a hipocrisia, os preconceitos, o ódio ao intelectual e ao conhecimento presentes nas falas dos padres. Mostra também a diferença entre palavras e atos eclesiásticos: o amor ao próximo pregado no púlpito dando lugar às humilhações e violências; a justiça divina pregada pelo texto bíblico dando lugar à divisão dos alunos em função de suas classes sociais... Cada palavra nesse prefácio vaza um soluço engolido pelo autor (“Trago na garganta soluços engolidos há séculos”).
           Entretanto, o livro não se compõe somente desse relato autobiográfico. Conforme menciona o autor, nesse prefácio, ele entrega a seus leitores parte das chaves de seu ser. Essas chaves são fundamentais para que entendamos os fundamentos existenciais do manifesto hedonista, caráter essencial de “A potência de existir”. Antes que leituras apressadas atribuam ao adjetivo hedonista significados puramente sexuais (fato corriqueiro numa sociedade reprimida e moralmente doente como a nossa), é importante circunscrever o que, nesta obra, se toma como hedonismo.
Fernanda Meireles

Michel Onfray: a potência de existir (parte 2)

       No capítulo 3 da primeira parte do livro, Michel Onfray desenvolve a proposta de um sistema hedonista. O autor começa por uma máxima de Nicolas-Sébastien Chamfort, a qual chama de imperativo categórico hedonista: “frua e faça fruir, sem fazer mal nem a você nem a ninguém, eis toda a moral”. Para Onfray tudo está dito aí porque a fruição de si não é possível ou pensável sem a fruição do outro, pois esta é definidora daquela. Quando não há o outro, como em Sade, não há fruição, não há moral.
        Neste tópico, o autor procura resgatar a dignidade do termo hedonista, dado que já fora acusado de uma série de coisas em função de sua opção filosófica. Tais acusações, acredita o autor, resultam do distúrbio histérico que a simples menção da palavra prazer provoca. São processos de transferências em que atribuímos ao outro aquilo que nos habita. Onfray afirma ainda que sua proposta foi vinculada à fruição grosseira, ao apetite voraz e compulsivo da sociedade consumista. Mas então de que trata Onfray quando fala de hedonismo?
         Onfray constrói em seu manifesto uma proposta de libertação do corpo, de uma descristianização do corpo, na qual a visão platônica e cristã seja substituída por uma visão ateológica e libertária. E quando Onfray fala do corpo, também está falando de alma, de ser e, portanto, sua proposta filosófica provoca desdobramentos que vão a uma estética cínica (rever também o preconceito ocidental que corroeu o significado deste adjetivo), a uma ética eletiva, a uma erótica solar, a uma bioética prometeica e a uma política libertária. Cada um destes desdobramentos constitui um capítulo da obra, justificando subtítulo manifesto hedonista.
        Sobre isso diz Onfray: “Vencida a marca dos trinta livros publicados, sinto a necessidade de fazer um balanço da questão do hedonismo. Se eu precisasse reduzi-lo a uma interrogação, seria evidentemente a de Espinosa: ‘o que pode o corpo?’ Ao que preciso acrescentar: em que ele se tornou o objeto filosófico predileto? Depois, questões em cascata: Como pensar o artista? De que maneira instalar a ética no terreno estético? Que espaço deixar a Dionísio numa civilização totalmente submetida a Apolo? Qual a natureza da relação entre hedonismo e anarquismo? Segundo que modalidades uma filosofia é praticável? Que pode o corpo esperar das biotecnologias pós-modernas? Que relações biografia e escrita mantêm em filosofia? De acordo com que princípios são forjadas as mitologias filosóficas? Como descristianizar a episteme ocidental? Novas comunidades são possíveis?
         Responder a essas interrogações requer uma série de desenvolvimentos constitutivos de um pensamento existencial radical. Donde a relatividade do artista, a ética imanente, a estética cínica, a política libertária, o nietzschianismo de esquerda, o materialismo sensualista, o utilitarismo jubiloso, a erótica solar, a bioética prometeica, o corpo faustiano, o hápax existencial, a vida filosófica, a historiografia alternativa, a ateologia pós-cristã, os contratos hedonistas – cada um deles, uma oportunidade para reencantar nosso tempos melancólicos com a proposição de um pensamento a viver.”
          Em suma, o hedonismo em Onfray é um sistema filosófico totalizante que engloba toda as áreas de ação humana e que para ser praticado exige que nasçamos de novo, livres de toda a episteme judaico-cristã, puros e simples como qualquer corpo que respeita sua natureza primeira. Eu traduziria o hedonismo de Onfray neste provérbio de William Blake: “A luxúria do bode é a glória de Deus. A fúria do leão é a sabedoria de Deus. A nudez da mulher é a obra de Deus”.
Fernanda Meireles