quinta-feira, 26 de maio de 2011

                           

Uma erótica solar

      Depois de meses sem postar, resistindo a uma cobrança freqüente por ter abandonado essas minhas leituras, hoje retorno com uma resenha da terceira parte do livro de Michel Onfray, cujo título encabeça esse post. Voltei à leitura desta parte e nela, mais uma vez, me encontrei.
         A defesa da libido libertária se faz contra um pano de fundo marcado pelo ideal ascético. Tal ideal, segundo Onfray, se caracteriza, inicialmente, pela mitologia judaico-cristã da falta. A tradição platônica, reciclada pelo cristianismo, produziu um corpo esquizofrênico, que se vê e se sente sujo, intensificando a pulsão de morte, a fruição de objetos submetidos pela violência ou pelo poder econômico.
        Essa máquina de produzir santos, eunucos, virgens, mães e esposas (nas palavras do autor) se construiu por meio da submissão do erotismo feminino e do mito do desejo como falta. O desejo como carência produz a frustração porque o seu objeto nunca irá concretizar o ideal que é projetado em si.
         Esse ideal ascético comporta ainda uma ideologia familista. Nela, o instinto gregário da espécie se mascara no discurso amoroso, mas, na verdade, sustenta um contrato social, um seguro de vida e, na maioria dos casos também, uma relação de dependência neurótica. Essa composição básica – a família – se reduplica em outras instâncias sociais mais complexas (o estado e a religião), camufla a permanência do mamífero.
       O ascetismo se completa com a domesticação e o controle do desejo, com a anulação da potência erótica feminina. O desejo feminino antes de tudo está aí para confirmar a potência do masculino, para sustentar seu orgulho falocêntrico. A mulher morre na figura da mãe e esposa.
          Já a libido libertária pauta-se no ‘eros leve’, o qual inicia-se pela dissociação entre amor, sexualidade e procriação. O uso de métodos contraceptivos quebra o elo entre sexualidade e procriação, permite a sexualidade pelo prazer sem o peso da geração vivida como punição. Resta, então, discutir o que se esconde cultural, social e psicologicamente sob a denominação de amor.
       Caso, amor seja entendido como afeto, ternura, a relação sexual não precisa ficar presa a planos futuros e a contratos afetivos de média ou longa duração. Ela será tão somente o desejo de viver, de desfrutar um instante pleno de pulsão de vida, no qual o desejo não é falta que se quer preenchida, mas transbordamento de vida. Não há necessidade de uma gravidade e uma seriedade, mas a leveza de se estar vivo e querer compartilhar isso: “Entre a inocência bestial, a inconseqüência de uma banalização da troca de carne e a transformação do ato sexual em operação embebida de moralina, existe um lugar para uma nova intersubjetividade leve, doce e terna” (p. 66). E aqui observa-se a redefinição do desejo como excesso, como transbordamento. “Eros não provém do céu das idéias platônicas, mas das partículas do filósofo materialista. Donde a necessidade de uma erótica pós-cristã, solar e atômica” (p. 60/61).
          Esse eros leve pleno de potência de vida é móbil, mutante, criativo, o oposto do eros pesado da tradição cristã, indexado à pulsão de morte. E por que atômica? Onfray responde: “A construção de situações eróticas leves define o primeiro gfrau de uma arte de amar digna desse nome. Ela supõe a criação de um campo de vibrações atômicas em que pairam as pequenas percepções dos simulacros. De Demócrito à neurobiologia contemporânea, passando por Epicuro e Lucrécio, somente a lógica das partículas pode cortar em pedaços o fantasma das idéias platônicas sobre esse tema” (p. 66). Para aqueles que acham q o cara está viajando, vale realmente dar uma olhada em algumas considerações da neurobiologia atual, como em António Damásio e suas postulações sobre a física quântica e as relações neuronais.
         A construção de relações eróticas leves se dá, então, não pela força de um contrato social ou de uma ligação neurótica, mas pela reiteração de situações eróticas leves, uma história peça por peça, que venha a durar o quanto tiver realmente que durar. Tais relações só serão possíveis entre solteiros e, nesse momento, ele não reduz o termo ao estado civil, mas o redefine como aquele indivíduo “que, apesar de comprometido numa história que podemos chamar de amorosa, conserva as prerrogativas e o uso da sua liberdade. Essa figura preza muito sua independência e desfruta da sua autonomia soberana. O contrato em que se instala não é de duração indeterminada, mas determinada, possivelmente renovável, decerto, mas não obrigatoriamente” (p. 67).
      As relações eróticas leves substituem o tradicional esquema tudo/nada pela configuração nada, mais, muito: dois seres que se desconhecem, se encontram, reiteram os encontros por desejo, na busca de mais ser, de mais expansão, de mais júbilo, de mais serenidade e, quando esse mais se concretiza, aparece o muito, aquele que qualifica uma relação rica, complexa, e leve!