domingo, 29 de agosto de 2010
Einstein, Bohr e a realidade
ATÉ QUE PONTO podemos conhecer o mundo? Alguns acreditam que podemos ir até o fim, encontrando respostas para as perguntas mais profundas sobre as operações da natureza. Outros acreditam que o conhecimento que podemos adquirir sobre o mundo tem limites. Esses limites não são apenas uma consequência dos nossos cérebros ou das ferramentas que usamos para estudar a realidade física. Fazem parte da própria natureza.
Dentro da história da ciência, talvez a melhor expressão dessa dicotomia seja encontrada nos famosos debates entre Albert Einstein e Niels Bohr, que se deram até a morte de Einstein em 1955.
Esses dois gigantes da física do século 20, que tinham grande respeito intelectual um pelo outro, trocaram opiniões em diversas ocasiões, tentando interpretar as misteriosas propriedades da ciência que ambos ajudaram a desenvolver: a estranha mecânica quântica, a física das moléculas, dos átomos e das partículas subatômicas.
Em 1905, Einstein publicou o artigo que considerava o mais revolucionário de sua obra. Nele, propôs que, diferentemente da visão prevalente na época, na qual a luz era vista como uma onda, ela também podia ser imaginada como feita de corpúsculos, mais tarde chamados de fótons. A questão era como algo podia ser onda e partícula ao mesmo tempo. A situação piorou em 1924, quando Louis de Broglie sugeriu que não só fótons, mas prótons e toda a matéria, também eram ondas.
A nova mecânica quântica impôs duas restrições fundamentais ao conhecimento: só podemos saber a probabilidade de encontrar uma partícula em algum lugar do espaço; o observador interage com o observado. Consequentemente, o determinismo da física clássica, a do nosso cotidiano, é apenas uma aproximação de uma realidade na qual o conhecimento completo parece ser uma impossibilidade.
Einstein não podia aceitar isso. Em carta a Max Born, que havia proposto a interpretação probabilística, escreveu: "A mecânica quântica demanda nossa atenção... A teoria funciona bem, mas não nos aproxima dos segredos do Velho. De qualquer forma, estou convencido que Ele não joga dados".
Para Einstein, uma descrição probabilística da natureza não podia ser a palavra final. A natureza era ordenada. Acreditava que, em nível mais profundo, tudo voltaria ao determinismo que conhecemos. Para Bohr, o sucesso da mecânica quântica falava por si mesmo. Via a relação entre observador e observado como uma expressão da nossa conexão com o mundo. Tanto que, quando recebeu a Ordem do Elefante da coroa dinamarquesa em 1947, escolheu o símbolo taoísta do yin e do yang como brasão.
As coisas permanecem em aberto. Experimentos que tentaram encontrar algum vestígio de uma estrutura mais profunda do que a probabilidade quântica falharam. Por outro lado, a mecânica quântica exibe propriedades bizarras: um sistema pode afetar o comportamento de outro a distâncias enormes. Einstein chamava isso de "ação fantasmagórica à distância". Existem efeitos não locais (sem a causa e o efeito que conhecemos tão bem) que parecem desafiar o espaço e o tempo. Einstein e Bohr adorariam saber que o debate continua.
Dentro da história da ciência, talvez a melhor expressão dessa dicotomia seja encontrada nos famosos debates entre Albert Einstein e Niels Bohr, que se deram até a morte de Einstein em 1955.
Esses dois gigantes da física do século 20, que tinham grande respeito intelectual um pelo outro, trocaram opiniões em diversas ocasiões, tentando interpretar as misteriosas propriedades da ciência que ambos ajudaram a desenvolver: a estranha mecânica quântica, a física das moléculas, dos átomos e das partículas subatômicas.
Em 1905, Einstein publicou o artigo que considerava o mais revolucionário de sua obra. Nele, propôs que, diferentemente da visão prevalente na época, na qual a luz era vista como uma onda, ela também podia ser imaginada como feita de corpúsculos, mais tarde chamados de fótons. A questão era como algo podia ser onda e partícula ao mesmo tempo. A situação piorou em 1924, quando Louis de Broglie sugeriu que não só fótons, mas prótons e toda a matéria, também eram ondas.
A nova mecânica quântica impôs duas restrições fundamentais ao conhecimento: só podemos saber a probabilidade de encontrar uma partícula em algum lugar do espaço; o observador interage com o observado. Consequentemente, o determinismo da física clássica, a do nosso cotidiano, é apenas uma aproximação de uma realidade na qual o conhecimento completo parece ser uma impossibilidade.
Einstein não podia aceitar isso. Em carta a Max Born, que havia proposto a interpretação probabilística, escreveu: "A mecânica quântica demanda nossa atenção... A teoria funciona bem, mas não nos aproxima dos segredos do Velho. De qualquer forma, estou convencido que Ele não joga dados".
Para Einstein, uma descrição probabilística da natureza não podia ser a palavra final. A natureza era ordenada. Acreditava que, em nível mais profundo, tudo voltaria ao determinismo que conhecemos. Para Bohr, o sucesso da mecânica quântica falava por si mesmo. Via a relação entre observador e observado como uma expressão da nossa conexão com o mundo. Tanto que, quando recebeu a Ordem do Elefante da coroa dinamarquesa em 1947, escolheu o símbolo taoísta do yin e do yang como brasão.
As coisas permanecem em aberto. Experimentos que tentaram encontrar algum vestígio de uma estrutura mais profunda do que a probabilidade quântica falharam. Por outro lado, a mecânica quântica exibe propriedades bizarras: um sistema pode afetar o comportamento de outro a distâncias enormes. Einstein chamava isso de "ação fantasmagórica à distância". Existem efeitos não locais (sem a causa e o efeito que conhecemos tão bem) que parecem desafiar o espaço e o tempo. Einstein e Bohr adorariam saber que o debate continua.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
domingo, 1 de agosto de 2010
Geometrias clássicas e contemporâneas
Euclides e a geometria
CÉSAR BENJAMIN
PASSOU DESPERCEBIDA a primeira tradução brasileira do livro mais editado no mundo, depois da Bíblia: "Os Elementos", de Euclides [trad. Irineu Bicudo, Ed. Unesp, 600 págs., R$ 81], o tratado científico mais importante da história. Quase nada sabemos do autor e das circunstâncias que cercaram a criação da obra no século 3º a.C. Por isso, e pela impressionante dimensão do trabalho, alguns já propuseram que Euclides fosse um nome coletivo e "Os Elementos", a obra de uma escola. Mas isso não é provável. A maioria dos estudiosos situa por volta de 295 a.C. o ponto médio da vida ativa do geômetra e aceita que ele estudou em Atenas até se transferir para Alexandria. Além dos "Elementos", autores antigos referem-se a onze livros seus, entre os quais um "Livro das Falácias", uma "Astronomia" e um tratado sobre música.
Houve outras obras com o mesmo título, que era usado para designar compilações de conhecimentos básicos. Mas elas se perderam, esmagadas pelo peso do tratado de Euclides. Em sua época, a matemática helênica já estava avançada, com uma tradição que remontava a Tales e Pitágoras, passando por Platão, Aristóteles e seus discípulos. "Euclides", diz Proclo, "juntou os elementos, ordenando muitos teoremas de Eudoxo, aperfeiçoando os de Teeteto e acrescentando demonstrações irrefutáveis que só tinham sido vagamente comprovadas por seus antecessores."
TRAJETÓRIA É difícil rastrear a trajetória da obra, sujeita por mais de 2.000 anos ao arbítrio de copistas, tradutores e comentadores, o que gerou diferentes traduções, traduções de traduções, versões resumidas, interpretações e interpolações. A primeira tradução árabe, feita por Al-Hajjãj no século 8º, registra no frontispício que "deixou de lado os supérfluos, preencheu as lacunas, corrigiu ou retirou os erros, até ter melhorado o livro e o tornado mais exato, e resumiu-o, conforme é encontrado na versão atual".
Poderíamos multiplicar tais exemplos. Em Lisboa, encontrei em um sebo "Los Elementos Geométricos del Famoso Euclides Megarense, Amplificados de Nuevas Demonstraciones por el Sargento General de Batalla Don Sebastian Fernandez de Medrano (1646-1705)"; já no título, o bravo general confunde o geômetra com um homônimo, Euclides de Megara.
O livro foi traduzido diversas vezes para o latim e o árabe na Idade Média, e para as mais importantes línguas vernáculas a partir do Renascimento. Até o século 19, as edições em grego adotaram como referência a de Teon de Alexandria, preparada cerca de 700 anos depois da época de Euclides.
Em 1808, porém, François Pey-rad constatou que um manuscrito trazido da Itália por Napoleão era uma versão mais próxima do original, iniciando pesquisas que culminaram no estabelecimento da edição de J.L. Heiberg, de 1888, hoje aceita como a mais fiel. Ela foi o ponto de partida da tradução que Irineu Bicudo realizou ao longo de dez anos, recém-publicada pela Editora Unesp. Um trabalho assim não se faz por dinheiro, mas por amor. Não há como exagerar a sua importância.
A ausência de um aparato crítico faz a edição brasileira (600 págs.) menor, em tamanho, que outras que a antecederam. A espanhola (Gredos), por exemplo, tem dois volumes e 772 páginas, enquanto a francesa (PUF) atinge quatro volumes e 2.024 páginas. Mas, no que é essencial, estamos diante de um trabalho cuidadoso e competente: comparado com as outras edições, o texto em português parece até mesmo mais fiel ao estilo seco de Euclides.
CIÊNCIA EMPÍRICA A geometria nasceu no Egito antigo como ciência empírica, um conjunto de métodos de mensuração necessários para reconstituir os limites das propriedades em seguida às inundações anuais do Nilo. O gênio grego a transformou em um sistema dedutivo, gigantesco salto.
Os gregos viram que os conhecimentos geométricos não poderiam depender da experiência ou da evidência sensorial, pois uma e outra nunca nos permitiriam entrar em contato com pontos, retas e planos, meras abstrações. Esses conhecimentos dependeriam de demonstrações. Sabiam, porém, que era impossível demonstrar tudo, pois isso provocaria uma regressão ao infinito, com cada afirmação sendo sempre remetida a afirmações anteriores. Para evitar isso, era preciso buscar o que Aristóteles chamou de "primeiros princípios", que, sendo evidentes, dispensariam as provas. A partir dessa âncora, a lógica nos conduziria a conhecimentos válidos, constituindo-se assim uma "ciência demonstrativa". Coube a Euclides realizar esse ideal.
Em um sistema desse tipo, hoje denominado axiomático, a escolha das proposições primeiras, ou postulados, devia atender três exigências principais: consistência (a partir deles não se podem deduzir logicamente proposições contraditórias), completude (entre quaisquer duas proposições contraditórias formuladas nos termos do sistema, uma pode ser corretamente demonstrada) e independência (nenhum postulado pode ser demonstrado a partir dos demais). (Em 1931, o matemático Kurt Gödel provou que sistemas axiomáticos usuais, como a aritmética e a teoria dos conjuntos, não podem preencher o requisito da completude, mas isso ultrapassa o tema deste artigo.)
Euclides deduziu toda a sua geometria -372 teoremas e 93 construções- a partir de cinco postulados, que aparecem acompanhados de 23 definições e cinco noções comuns.
EXCESSO Perguntado sobre como conseguira esculpir a "Pietà" a partir de um bloco de mármore, Michelangelo deu a famosa resposta: "Ela já estava lá; eu só tirei o excesso". Euclides poderia dizer o mesmo, lidando agora não com a matéria, mas com o espírito.
Os postulados aparecem no início dos "Elementos", mas isso não deve nos enganar: eles são o ponto de chegada de uma longa reflexão que vai desbastando o pensamento, muitas vezes tendo teoremas como ponto de partida. A ordem expositiva do sistema, de natureza lógica, não segue o caminho percorrido na sua formulação.
A escolha de apenas cinco postulados -todos simples, por definição- para deles derivar uma geometria completa é um trabalho de gênio. É o momento mais difícil da construção, pois as proposições que estamos acostumados a usar derivam de outras proposições, cujos pontos de partida desconhecemos.
DEMONSTRAÇÃO Euclides é exaustivo no que Leibniz chamou de "arte de demonstrar". Qualquer um de nós dispensaria diversas de suas demonstrações, por óbvias, mas não devemos criticar: a cultura helênica estava repleta de sofistas habilíssimos em contestar as verdades mais evidentes.
O esforço em superá-los resultou em uma construção intelectual de magnífica concepção: as proposições primeiras, indemonstráveis, são enunciadas explicitamente; os termos usados são objeto de definição prévia; e os teoremas são demonstrados (às vezes, com redução ao absurdo) sem o recurso aos sentidos ou à experiência empírica. Novas provas se sucedem, sempre por lógica, com base naquilo que foi provado antes. O resultado é uma rede na qual todas as proposições se comunicam, sustentando-se umas às outras. No lugar da compilação de receitas práticas ou de enunciados empíricos, legados por egípcios e babilônios, surge assim uma ciência racional.
O êxito foi inigualável. É o único caso, na história, em que um só livro fundou uma disciplina científica, instituindo um padrão que passou a servir de referência ao pensamento rigoroso. Graças a Euclides, a unidade e a estabilidade da geometria foram excepcionais. Por mais de 2.000 anos ela permaneceu fundamentalmente a mesma, com acréscimos, é claro, mas sem crises, confundindo- se por isso com os fundamentos da razão. Os demais ramos do conhecimento deviam inspirar-se nela.
NEWTON A obra de Isaac Newton (1642-1727) reforçou a importância da de Euclides. Na juventude, Newton foi traído pela aparente simplicidade dos "Elementos", cuja leitura largou, por considerá-la banal. Redimiu-se adulto: depois de reestudar o livro, percebeu que nos seus postulados estão implícitas, como veremos, as propriedades do espaço, tal como ele mesmo veio a conceber no seu sistema do mundo: um meio homogêneo, imutável, intemporal, infinito e infinitamente divisível, que existe independentemente do conteúdo físico que contém. Embora esse espaço absoluto tenha se tornado desnecessário na física contemporânea, não se deve subestimar a profundidade de sua concepção: nenhuma de tais características é acessível aos sentidos. A ideia euclidiana de uma extensão pura e de um espaço sem qualidades é extremamente abstrata.
No fim do século 18, "Os Elementos", de Euclides, e os "Principia", de Newton, davam ao conhecimento científico uma base imponente, sobre a qual Immanuel Kant (1724-1804), maravilhado, filosofou. Ele viu uma geometria dotada de validade universal, construída de modo racional e, ao mesmo tempo, passível de ser aplicada ao mundo físico. Identificou nisso um problema profundo: como um conhecimento que se desenvolve sem recorrer à realidade sensível pode ser a chave para decifrá-la? Como uma pura criação da razão humana pode representar, com tamanha perfeição, o mundo exterior? Que estranha conexão é essa, entre a mente do homem e as coisas?
Tendo Euclides e Newton como principais referências, Kant concluiu que espaço e tempo são "intuições puras", estruturas do próprio sujeito. A intuição a priori do espaço nos possibilita os juízos a priori da geometria, enquanto a intuição a priori do tempo funda as operações do cálculo, que se sucedem e duram. A construção kantiana sofreu duro golpe quando, primeiro, a geometria euclidiana e, depois, a física newtoniana perderam o caráter universal. Para entender isso, no caso da geometria, precisamos contemplar os cinco postulados.
POSTULADOS Uso a tradução de Irineu Bicudo, mas faço a ressalva de que o que Euclides chama de "reta" é o que hoje chamamos de "segmento de reta".
1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.
2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.
3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo.
4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos.
5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça ângulos interiores e do mesmo lado menores que dois retos, sendo prolongadas as duas retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores que dois retos.
O primeiro postulado diz que somente uma reta pode ser desenhada entre dois pontos quaisquer, o que equivale a dizer que, se dois segmentos de reta têm as mesmas extremidades, todo o seu comprimento coincide; logo, o espaço é contínuo. O segundo postulado diz que quaisquer retas podem ser prolongadas indefinidamente; logo, o espaço é infinito em todas as direções. O terceiro postulado afirma a existência do círculo e enfatiza que o espaço, além de infinito, é infinitamente divisível, pois diz que o raio de um círculo pode ter qualquer comprimento.
O quarto postulado é desconcertante por sua aparente trivialidade. Note-se, no entanto, que Euclides não diz que os ângulos retos são retos, o que seria uma redundância; ele diz que são "iguais entre si", uma ideia que não está contida na definição de ângulo reto. Ao estabelecer que as figuras podem ocupar quaisquer posições e conservar suas formas, permanecendo "iguais entre si", o postulado implica um espaço homogêneo.
Os postulados, como se vê, definem as características do espaço -hoje seria mais rigoroso dizer de um tipo de espaço- e estabelecem a existência de pontos, retas e círculos, os elementos básicos da geometria de Euclides, com os quais ele demonstrará a existência de todas as outras figuras que define.
PARALELAS Mas Euclides sentiu a necessidade de também postular a existência de paralelas, necessárias em muitas demonstrações. Era uma encrenca, pois exigia encontrar uma afirmação que fosse evidente e, ao mesmo tempo, se referisse ao que acontece no espaço remoto: paralelas são retas coplanares que nunca se encontram. A solução do geômetra, mais uma vez, foi engenhosa: propôs um postulado que só fala de retas secantes, cuja existência é indiscutível, mas mantém implícita a existência de paralelas.
Mesmo assim, ele logo foi reconhecido como problemático. Ouçamos Proclo: "O fato de que as retas convergem quando os ângulos retos são diminuídos é certo e necessário; mas a afirmação de que chegarão a se encontrar é apenas verossímil, mas não necessária, na falta de um argumento que prove que isso é verdade para duas linhas retas. Pois o fato de que existam algumas linhas que se aproximam indefinidamente mas permanecem sem se tocar [asýmptotoi], por mais improvável e paradoxal que pareça, também é certo e está comprovado em relação a linhas de outro tipo. Por que, no caso das retas, não é possível ocorrer o mesmo que ocorre com as linhas mencionadas?". Proclo conclui que o quinto postulado "deve ser riscado dos postulados, pois se trata de um teorema repleto de dificuldades".
DEBATE Esse debate envolveu os grandes geômetras gregos, árabes e europeus durante mais de 2.000 anos, sem solução. Cresceram as suspeitas de que não se tratava de um verdadeiro postulado, mas as tentativas de manejá-lo como um teorema exigiam introduzir novos postulados igualmente problemáticos, que eram meros equivalentes lógicos do postulado de Euclides; configurava-se, assim, o erro que os filósofos chamam de petição de princípio, ou seja, adotar como ponto de partida de uma demonstração o mesmo argumento que será provado no fim dela. Tentou-se deduzir o quinto postulado dos demais, até que se provou que isso era impossível. Buscaram-se formulações alternativas, todas insuficientes. E, quando ele era simplesmente retirado, o sistema perdia o requisito da completude: muitos teoremas não podiam mais ser demonstrados.
Parecia impossível inserir consistentemente a afirmação de Euclides em seu próprio sistema. O postulado das paralelas, como ficou conhecido, permanecia como um corpo estranho, um expediente que preenchia uma lacuna no encadeamento lógico. D'Alembert (1717-83) disse que ele era "o escândalo da geometria", pois a credibilidade dos teoremas não pode ser maior do que o grau de credibilidade associado ao postulado que tenha menor credibilidade.
Dois pensadores estiveram perto da solução, o árabe Al-Khayyami (1048-1131) e o jesuíta italiano Giovanni Girolamo Saccheri (1667-1733). Ambos adotaram o caminho da redução ao absurdo. Aceitando o restante do sistema euclidiano e negando validade ao quinto postulado, pretendiam chegar a contradições, o que demonstraria a validade e a necessidade dele. Não sabemos bem até onde foi Al- Khayyami, mas Saccheri abandonou a empreitada quando começou a encontrar o que denominou "teoremas estranhos".
Teve nas mãos o bilhete premiado, mas não percebeu. Começara a descobrir uma outra geometria, mas viu nisso um erro. Estava preso à ideia milenar de que só a geometria de Euclides podia existir.
NOVAS GEOMETRIAS Só no século 19, um matemático de valor excepcional, o alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855), e dois matemáticos jovens, o húngaro János Bolyai (1802-60) e o russo Nikolai Lobachevski (1792-1856), trabalhando de forma independente, ousaram prosseguir até o fim na dedução dos "teoremas estranhos".
Em vez de encontrar contradições, como esperavam, chegaram a geometrias consistentes e completas, diferentes da euclidiana, mas sem defeito lógico. Gauss não divulgou seu trabalho, pois acreditou que ninguém o compreenderia. O inseguro Bolyai entregou o manuscrito ao pai, também matemático, que o enviou a Gauss sem saber que este último já tinha percorrido o mesmo caminho. O texto pioneiro de Lobachevski, por sua vez, denominava-se "Geometria Imaginária". Os descobridores pisavam em ovos: viam que as descobertas eram deveras estranhas. Não era para menos: Bolyai e Lobachevski, por exemplo, adotaram como postulado a afirmação de que por um ponto fora de uma reta é possível fazer passar mais de uma paralela à reta dada...
O trabalho dos três foi completado depois, magistralmente, por um aluno de Gauss, Bernhard Riemann (1826-66), cuja geometria nega a existência de paralelas. Ao contrário do espaço infinito de Euclides, o espaço de Riemann é finito, mas ilimitado, pois ele aplicou a noção de curvatura ao espaço tridimensional, em uma formulação muito abstrata, quase sempre mal compreendida. (Muito depois, essa "geometria imaginária" foi decisiva na formulação da relatividade geral, a teoria física mais importante do século 20.)
Para dar só um exemplo dos resultados discrepantes, em cada uma das geometrias a soma dos ângulos de um triângulo é diferente: sempre igual a 180º em Euclides, sempre menor que esse valor em Lobachevski e Bolyai, sempre maior em Riemann. Eugênio Beltrami, Felix Klein, Henri Poincaré e David Hilbert demonstraram em sequência, por diversas vias, que as novas geometrias tinham a mesma validade que a geometria de Euclides. Mais ainda: demonstraram que a eventual inconsistência de uma delas implicaria a inconsistência do próprio sistema euclidiano. Nunca mais poderíamos, como Saccheri, nos livrar dos "teoremas estranhos". Desde então, as geometrias se multiplicaram, mas, para nosso consolo, Sophus Lie (1842-99) demonstrou que não são infinitas.
Como é possível essa existência múltipla da verdade? Qual é, afinal, a geometria verdadeira? Ouçamos Einstein: "Não podemos nos interrogar se é verdade que por dois pontos passa uma única reta. Podemos apenas dizer que a geometria de Euclides trata de figuras, que ela chama de 'retas', às quais atribui a propriedade de serem determinadas univocamente por dois de seus pontos. O conceito de 'verdadeiro' não se aplica aos enunciados da geometria pura, pois com 'verdadeiro' nós costumamos, em última análise, designar a correspondência com um objeto 'real'. Porém, a geometria não se ocupa da relação entre seus conceitos e os objetos da experiência, mas apenas com os nexos lógicos desses conceitos entre si".
Teoremas incompatíveis entre si podem ser igualmente verdadeiros se estiverem perfeitamente integrados em diferentes sistemas lógicos. Compreender isso foi a culminância do ideal da ciência grega, de um modo que nem os gregos ousaram pensar.
MUNDO FÍSICO Sempre que avança, a ciência cria problemas novos. Por isso, sua marcha não pode ter fim. Se a matemática passou a admitir diferentes geometrias, qual delas se aplica ao mundo físico? No século 19, a questão era inédita. Gauss concluiu que a resposta dependeria da observação empírica. Com medições geodésicas, lançou-se em busca de uma prova experimental, mas seus esforços não foram conclusivos: nas escalas humanas, as geometrias convergem para padrões euclidianos. (Poincaré propôs outra solução: as geometrias são convenções, de modo que todas são aplicáveis; a euclidiana é apenas mais cômoda.)
Paradoxalmente, a culminação do ideal grego redimiu a geometria praticada por egípcios e babilônios, que ele mesmo havia superado. Seria mais correto dizer que houve uma bifurcação. Pois, ao lado de uma geometria física, novamente empírica, as pesquisas em geometria pura foram impulsionadas na direção de formulações ainda mais abstratas, em busca de procedimentos lógicos mais rigorosos.
Hilbert elaborou novos postulados de modo a apartá-los de qualquer representação sensível. Em vez de evocar objetos especificados, buscam estabelecer relações entre objetos genéricos e são manejados sem que contenham nenhum sentido, segundo regras puramente formais. Esse caráter hiperabstrato da matemática contemporânea foi sintetizado, não sem ironia, por Bertrand Russell: "A matemática é uma ciência na qual nunca sabemos do que estamos falando, nem se aquilo que estamos falando é verdadeiro".
Pobre Kant. Se a matemática trabalha com proposições destituídas de sentido, adaptáveis a qualquer conteúdo, então se desfaz o problema que o atormentou. A aplicabilidade das leis matemáticas ao real não decorre de uma harmonia maravilhosa entre o espírito e as coisas. Tais leis valem em nosso mundo simplesmente porque valem em todos os mundos possíveis.
Dan Michelin (Impa) e Francisco Antônio Doria (UFRJ) fizeram uma leitura amiga da primeira versão deste texto, com sugestões. Ele não poderia ter sido escrito sem exaustiva consulta, principalmente, aos ensaios do "Dicionário de Biografias Científicas" (Contraponto, 2007, 3 vols., 2.694 páginas).
CÉSAR BENJAMIN
PASSOU DESPERCEBIDA a primeira tradução brasileira do livro mais editado no mundo, depois da Bíblia: "Os Elementos", de Euclides [trad. Irineu Bicudo, Ed. Unesp, 600 págs., R$ 81], o tratado científico mais importante da história. Quase nada sabemos do autor e das circunstâncias que cercaram a criação da obra no século 3º a.C. Por isso, e pela impressionante dimensão do trabalho, alguns já propuseram que Euclides fosse um nome coletivo e "Os Elementos", a obra de uma escola. Mas isso não é provável. A maioria dos estudiosos situa por volta de 295 a.C. o ponto médio da vida ativa do geômetra e aceita que ele estudou em Atenas até se transferir para Alexandria. Além dos "Elementos", autores antigos referem-se a onze livros seus, entre os quais um "Livro das Falácias", uma "Astronomia" e um tratado sobre música.
Houve outras obras com o mesmo título, que era usado para designar compilações de conhecimentos básicos. Mas elas se perderam, esmagadas pelo peso do tratado de Euclides. Em sua época, a matemática helênica já estava avançada, com uma tradição que remontava a Tales e Pitágoras, passando por Platão, Aristóteles e seus discípulos. "Euclides", diz Proclo, "juntou os elementos, ordenando muitos teoremas de Eudoxo, aperfeiçoando os de Teeteto e acrescentando demonstrações irrefutáveis que só tinham sido vagamente comprovadas por seus antecessores."
TRAJETÓRIA É difícil rastrear a trajetória da obra, sujeita por mais de 2.000 anos ao arbítrio de copistas, tradutores e comentadores, o que gerou diferentes traduções, traduções de traduções, versões resumidas, interpretações e interpolações. A primeira tradução árabe, feita por Al-Hajjãj no século 8º, registra no frontispício que "deixou de lado os supérfluos, preencheu as lacunas, corrigiu ou retirou os erros, até ter melhorado o livro e o tornado mais exato, e resumiu-o, conforme é encontrado na versão atual".
Poderíamos multiplicar tais exemplos. Em Lisboa, encontrei em um sebo "Los Elementos Geométricos del Famoso Euclides Megarense, Amplificados de Nuevas Demonstraciones por el Sargento General de Batalla Don Sebastian Fernandez de Medrano (1646-1705)"; já no título, o bravo general confunde o geômetra com um homônimo, Euclides de Megara.
O livro foi traduzido diversas vezes para o latim e o árabe na Idade Média, e para as mais importantes línguas vernáculas a partir do Renascimento. Até o século 19, as edições em grego adotaram como referência a de Teon de Alexandria, preparada cerca de 700 anos depois da época de Euclides.
Em 1808, porém, François Pey-rad constatou que um manuscrito trazido da Itália por Napoleão era uma versão mais próxima do original, iniciando pesquisas que culminaram no estabelecimento da edição de J.L. Heiberg, de 1888, hoje aceita como a mais fiel. Ela foi o ponto de partida da tradução que Irineu Bicudo realizou ao longo de dez anos, recém-publicada pela Editora Unesp. Um trabalho assim não se faz por dinheiro, mas por amor. Não há como exagerar a sua importância.
A ausência de um aparato crítico faz a edição brasileira (600 págs.) menor, em tamanho, que outras que a antecederam. A espanhola (Gredos), por exemplo, tem dois volumes e 772 páginas, enquanto a francesa (PUF) atinge quatro volumes e 2.024 páginas. Mas, no que é essencial, estamos diante de um trabalho cuidadoso e competente: comparado com as outras edições, o texto em português parece até mesmo mais fiel ao estilo seco de Euclides.
CIÊNCIA EMPÍRICA A geometria nasceu no Egito antigo como ciência empírica, um conjunto de métodos de mensuração necessários para reconstituir os limites das propriedades em seguida às inundações anuais do Nilo. O gênio grego a transformou em um sistema dedutivo, gigantesco salto.
Os gregos viram que os conhecimentos geométricos não poderiam depender da experiência ou da evidência sensorial, pois uma e outra nunca nos permitiriam entrar em contato com pontos, retas e planos, meras abstrações. Esses conhecimentos dependeriam de demonstrações. Sabiam, porém, que era impossível demonstrar tudo, pois isso provocaria uma regressão ao infinito, com cada afirmação sendo sempre remetida a afirmações anteriores. Para evitar isso, era preciso buscar o que Aristóteles chamou de "primeiros princípios", que, sendo evidentes, dispensariam as provas. A partir dessa âncora, a lógica nos conduziria a conhecimentos válidos, constituindo-se assim uma "ciência demonstrativa". Coube a Euclides realizar esse ideal.
Em um sistema desse tipo, hoje denominado axiomático, a escolha das proposições primeiras, ou postulados, devia atender três exigências principais: consistência (a partir deles não se podem deduzir logicamente proposições contraditórias), completude (entre quaisquer duas proposições contraditórias formuladas nos termos do sistema, uma pode ser corretamente demonstrada) e independência (nenhum postulado pode ser demonstrado a partir dos demais). (Em 1931, o matemático Kurt Gödel provou que sistemas axiomáticos usuais, como a aritmética e a teoria dos conjuntos, não podem preencher o requisito da completude, mas isso ultrapassa o tema deste artigo.)
Euclides deduziu toda a sua geometria -372 teoremas e 93 construções- a partir de cinco postulados, que aparecem acompanhados de 23 definições e cinco noções comuns.
EXCESSO Perguntado sobre como conseguira esculpir a "Pietà" a partir de um bloco de mármore, Michelangelo deu a famosa resposta: "Ela já estava lá; eu só tirei o excesso". Euclides poderia dizer o mesmo, lidando agora não com a matéria, mas com o espírito.
Os postulados aparecem no início dos "Elementos", mas isso não deve nos enganar: eles são o ponto de chegada de uma longa reflexão que vai desbastando o pensamento, muitas vezes tendo teoremas como ponto de partida. A ordem expositiva do sistema, de natureza lógica, não segue o caminho percorrido na sua formulação.
A escolha de apenas cinco postulados -todos simples, por definição- para deles derivar uma geometria completa é um trabalho de gênio. É o momento mais difícil da construção, pois as proposições que estamos acostumados a usar derivam de outras proposições, cujos pontos de partida desconhecemos.
DEMONSTRAÇÃO Euclides é exaustivo no que Leibniz chamou de "arte de demonstrar". Qualquer um de nós dispensaria diversas de suas demonstrações, por óbvias, mas não devemos criticar: a cultura helênica estava repleta de sofistas habilíssimos em contestar as verdades mais evidentes.
O esforço em superá-los resultou em uma construção intelectual de magnífica concepção: as proposições primeiras, indemonstráveis, são enunciadas explicitamente; os termos usados são objeto de definição prévia; e os teoremas são demonstrados (às vezes, com redução ao absurdo) sem o recurso aos sentidos ou à experiência empírica. Novas provas se sucedem, sempre por lógica, com base naquilo que foi provado antes. O resultado é uma rede na qual todas as proposições se comunicam, sustentando-se umas às outras. No lugar da compilação de receitas práticas ou de enunciados empíricos, legados por egípcios e babilônios, surge assim uma ciência racional.
O êxito foi inigualável. É o único caso, na história, em que um só livro fundou uma disciplina científica, instituindo um padrão que passou a servir de referência ao pensamento rigoroso. Graças a Euclides, a unidade e a estabilidade da geometria foram excepcionais. Por mais de 2.000 anos ela permaneceu fundamentalmente a mesma, com acréscimos, é claro, mas sem crises, confundindo- se por isso com os fundamentos da razão. Os demais ramos do conhecimento deviam inspirar-se nela.
NEWTON A obra de Isaac Newton (1642-1727) reforçou a importância da de Euclides. Na juventude, Newton foi traído pela aparente simplicidade dos "Elementos", cuja leitura largou, por considerá-la banal. Redimiu-se adulto: depois de reestudar o livro, percebeu que nos seus postulados estão implícitas, como veremos, as propriedades do espaço, tal como ele mesmo veio a conceber no seu sistema do mundo: um meio homogêneo, imutável, intemporal, infinito e infinitamente divisível, que existe independentemente do conteúdo físico que contém. Embora esse espaço absoluto tenha se tornado desnecessário na física contemporânea, não se deve subestimar a profundidade de sua concepção: nenhuma de tais características é acessível aos sentidos. A ideia euclidiana de uma extensão pura e de um espaço sem qualidades é extremamente abstrata.
No fim do século 18, "Os Elementos", de Euclides, e os "Principia", de Newton, davam ao conhecimento científico uma base imponente, sobre a qual Immanuel Kant (1724-1804), maravilhado, filosofou. Ele viu uma geometria dotada de validade universal, construída de modo racional e, ao mesmo tempo, passível de ser aplicada ao mundo físico. Identificou nisso um problema profundo: como um conhecimento que se desenvolve sem recorrer à realidade sensível pode ser a chave para decifrá-la? Como uma pura criação da razão humana pode representar, com tamanha perfeição, o mundo exterior? Que estranha conexão é essa, entre a mente do homem e as coisas?
Tendo Euclides e Newton como principais referências, Kant concluiu que espaço e tempo são "intuições puras", estruturas do próprio sujeito. A intuição a priori do espaço nos possibilita os juízos a priori da geometria, enquanto a intuição a priori do tempo funda as operações do cálculo, que se sucedem e duram. A construção kantiana sofreu duro golpe quando, primeiro, a geometria euclidiana e, depois, a física newtoniana perderam o caráter universal. Para entender isso, no caso da geometria, precisamos contemplar os cinco postulados.
POSTULADOS Uso a tradução de Irineu Bicudo, mas faço a ressalva de que o que Euclides chama de "reta" é o que hoje chamamos de "segmento de reta".
1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.
2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.
3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo.
4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos.
5. E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça ângulos interiores e do mesmo lado menores que dois retos, sendo prolongadas as duas retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores que dois retos.
O primeiro postulado diz que somente uma reta pode ser desenhada entre dois pontos quaisquer, o que equivale a dizer que, se dois segmentos de reta têm as mesmas extremidades, todo o seu comprimento coincide; logo, o espaço é contínuo. O segundo postulado diz que quaisquer retas podem ser prolongadas indefinidamente; logo, o espaço é infinito em todas as direções. O terceiro postulado afirma a existência do círculo e enfatiza que o espaço, além de infinito, é infinitamente divisível, pois diz que o raio de um círculo pode ter qualquer comprimento.
O quarto postulado é desconcertante por sua aparente trivialidade. Note-se, no entanto, que Euclides não diz que os ângulos retos são retos, o que seria uma redundância; ele diz que são "iguais entre si", uma ideia que não está contida na definição de ângulo reto. Ao estabelecer que as figuras podem ocupar quaisquer posições e conservar suas formas, permanecendo "iguais entre si", o postulado implica um espaço homogêneo.
Os postulados, como se vê, definem as características do espaço -hoje seria mais rigoroso dizer de um tipo de espaço- e estabelecem a existência de pontos, retas e círculos, os elementos básicos da geometria de Euclides, com os quais ele demonstrará a existência de todas as outras figuras que define.
PARALELAS Mas Euclides sentiu a necessidade de também postular a existência de paralelas, necessárias em muitas demonstrações. Era uma encrenca, pois exigia encontrar uma afirmação que fosse evidente e, ao mesmo tempo, se referisse ao que acontece no espaço remoto: paralelas são retas coplanares que nunca se encontram. A solução do geômetra, mais uma vez, foi engenhosa: propôs um postulado que só fala de retas secantes, cuja existência é indiscutível, mas mantém implícita a existência de paralelas.
Mesmo assim, ele logo foi reconhecido como problemático. Ouçamos Proclo: "O fato de que as retas convergem quando os ângulos retos são diminuídos é certo e necessário; mas a afirmação de que chegarão a se encontrar é apenas verossímil, mas não necessária, na falta de um argumento que prove que isso é verdade para duas linhas retas. Pois o fato de que existam algumas linhas que se aproximam indefinidamente mas permanecem sem se tocar [asýmptotoi], por mais improvável e paradoxal que pareça, também é certo e está comprovado em relação a linhas de outro tipo. Por que, no caso das retas, não é possível ocorrer o mesmo que ocorre com as linhas mencionadas?". Proclo conclui que o quinto postulado "deve ser riscado dos postulados, pois se trata de um teorema repleto de dificuldades".
DEBATE Esse debate envolveu os grandes geômetras gregos, árabes e europeus durante mais de 2.000 anos, sem solução. Cresceram as suspeitas de que não se tratava de um verdadeiro postulado, mas as tentativas de manejá-lo como um teorema exigiam introduzir novos postulados igualmente problemáticos, que eram meros equivalentes lógicos do postulado de Euclides; configurava-se, assim, o erro que os filósofos chamam de petição de princípio, ou seja, adotar como ponto de partida de uma demonstração o mesmo argumento que será provado no fim dela. Tentou-se deduzir o quinto postulado dos demais, até que se provou que isso era impossível. Buscaram-se formulações alternativas, todas insuficientes. E, quando ele era simplesmente retirado, o sistema perdia o requisito da completude: muitos teoremas não podiam mais ser demonstrados.
Parecia impossível inserir consistentemente a afirmação de Euclides em seu próprio sistema. O postulado das paralelas, como ficou conhecido, permanecia como um corpo estranho, um expediente que preenchia uma lacuna no encadeamento lógico. D'Alembert (1717-83) disse que ele era "o escândalo da geometria", pois a credibilidade dos teoremas não pode ser maior do que o grau de credibilidade associado ao postulado que tenha menor credibilidade.
Dois pensadores estiveram perto da solução, o árabe Al-Khayyami (1048-1131) e o jesuíta italiano Giovanni Girolamo Saccheri (1667-1733). Ambos adotaram o caminho da redução ao absurdo. Aceitando o restante do sistema euclidiano e negando validade ao quinto postulado, pretendiam chegar a contradições, o que demonstraria a validade e a necessidade dele. Não sabemos bem até onde foi Al- Khayyami, mas Saccheri abandonou a empreitada quando começou a encontrar o que denominou "teoremas estranhos".
Teve nas mãos o bilhete premiado, mas não percebeu. Começara a descobrir uma outra geometria, mas viu nisso um erro. Estava preso à ideia milenar de que só a geometria de Euclides podia existir.
NOVAS GEOMETRIAS Só no século 19, um matemático de valor excepcional, o alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855), e dois matemáticos jovens, o húngaro János Bolyai (1802-60) e o russo Nikolai Lobachevski (1792-1856), trabalhando de forma independente, ousaram prosseguir até o fim na dedução dos "teoremas estranhos".
Em vez de encontrar contradições, como esperavam, chegaram a geometrias consistentes e completas, diferentes da euclidiana, mas sem defeito lógico. Gauss não divulgou seu trabalho, pois acreditou que ninguém o compreenderia. O inseguro Bolyai entregou o manuscrito ao pai, também matemático, que o enviou a Gauss sem saber que este último já tinha percorrido o mesmo caminho. O texto pioneiro de Lobachevski, por sua vez, denominava-se "Geometria Imaginária". Os descobridores pisavam em ovos: viam que as descobertas eram deveras estranhas. Não era para menos: Bolyai e Lobachevski, por exemplo, adotaram como postulado a afirmação de que por um ponto fora de uma reta é possível fazer passar mais de uma paralela à reta dada...
O trabalho dos três foi completado depois, magistralmente, por um aluno de Gauss, Bernhard Riemann (1826-66), cuja geometria nega a existência de paralelas. Ao contrário do espaço infinito de Euclides, o espaço de Riemann é finito, mas ilimitado, pois ele aplicou a noção de curvatura ao espaço tridimensional, em uma formulação muito abstrata, quase sempre mal compreendida. (Muito depois, essa "geometria imaginária" foi decisiva na formulação da relatividade geral, a teoria física mais importante do século 20.)
Para dar só um exemplo dos resultados discrepantes, em cada uma das geometrias a soma dos ângulos de um triângulo é diferente: sempre igual a 180º em Euclides, sempre menor que esse valor em Lobachevski e Bolyai, sempre maior em Riemann. Eugênio Beltrami, Felix Klein, Henri Poincaré e David Hilbert demonstraram em sequência, por diversas vias, que as novas geometrias tinham a mesma validade que a geometria de Euclides. Mais ainda: demonstraram que a eventual inconsistência de uma delas implicaria a inconsistência do próprio sistema euclidiano. Nunca mais poderíamos, como Saccheri, nos livrar dos "teoremas estranhos". Desde então, as geometrias se multiplicaram, mas, para nosso consolo, Sophus Lie (1842-99) demonstrou que não são infinitas.
Como é possível essa existência múltipla da verdade? Qual é, afinal, a geometria verdadeira? Ouçamos Einstein: "Não podemos nos interrogar se é verdade que por dois pontos passa uma única reta. Podemos apenas dizer que a geometria de Euclides trata de figuras, que ela chama de 'retas', às quais atribui a propriedade de serem determinadas univocamente por dois de seus pontos. O conceito de 'verdadeiro' não se aplica aos enunciados da geometria pura, pois com 'verdadeiro' nós costumamos, em última análise, designar a correspondência com um objeto 'real'. Porém, a geometria não se ocupa da relação entre seus conceitos e os objetos da experiência, mas apenas com os nexos lógicos desses conceitos entre si".
Teoremas incompatíveis entre si podem ser igualmente verdadeiros se estiverem perfeitamente integrados em diferentes sistemas lógicos. Compreender isso foi a culminância do ideal da ciência grega, de um modo que nem os gregos ousaram pensar.
MUNDO FÍSICO Sempre que avança, a ciência cria problemas novos. Por isso, sua marcha não pode ter fim. Se a matemática passou a admitir diferentes geometrias, qual delas se aplica ao mundo físico? No século 19, a questão era inédita. Gauss concluiu que a resposta dependeria da observação empírica. Com medições geodésicas, lançou-se em busca de uma prova experimental, mas seus esforços não foram conclusivos: nas escalas humanas, as geometrias convergem para padrões euclidianos. (Poincaré propôs outra solução: as geometrias são convenções, de modo que todas são aplicáveis; a euclidiana é apenas mais cômoda.)
Paradoxalmente, a culminação do ideal grego redimiu a geometria praticada por egípcios e babilônios, que ele mesmo havia superado. Seria mais correto dizer que houve uma bifurcação. Pois, ao lado de uma geometria física, novamente empírica, as pesquisas em geometria pura foram impulsionadas na direção de formulações ainda mais abstratas, em busca de procedimentos lógicos mais rigorosos.
Hilbert elaborou novos postulados de modo a apartá-los de qualquer representação sensível. Em vez de evocar objetos especificados, buscam estabelecer relações entre objetos genéricos e são manejados sem que contenham nenhum sentido, segundo regras puramente formais. Esse caráter hiperabstrato da matemática contemporânea foi sintetizado, não sem ironia, por Bertrand Russell: "A matemática é uma ciência na qual nunca sabemos do que estamos falando, nem se aquilo que estamos falando é verdadeiro".
Pobre Kant. Se a matemática trabalha com proposições destituídas de sentido, adaptáveis a qualquer conteúdo, então se desfaz o problema que o atormentou. A aplicabilidade das leis matemáticas ao real não decorre de uma harmonia maravilhosa entre o espírito e as coisas. Tais leis valem em nosso mundo simplesmente porque valem em todos os mundos possíveis.
Dan Michelin (Impa) e Francisco Antônio Doria (UFRJ) fizeram uma leitura amiga da primeira versão deste texto, com sugestões. Ele não poderia ter sido escrito sem exaustiva consulta, principalmente, aos ensaios do "Dicionário de Biografias Científicas" (Contraponto, 2007, 3 vols., 2.694 páginas).
O erro de Kepler
Em 1596, com o furor de uma mente devota, o jovem Johannes Kepler, então com apenas 25 anos, publica seu primeiro livro, "Mysterium Cosmographicum" ou "O Mistério Cosmográfico". Nele, o astrônomo principiante propõe nada menos do que a solução para a estrutura do Cosmo, o que acreditava ser o plano divino da Criação.
Tudo se deu durante uma aula que ministrava para um punhado de estudantes desinteressados. Quando explicava as conjunções dos planetas Júpiter e Saturno, Kepler se perguntou se o fato de Saturno estar aproximadamente duas vezes mais longe do Sol do que Júpiter era sintoma de uma ordem mais profunda: talvez a estrutura cósmica seguisse as regras da geometria. Fosse esse o caso, a mente humana teria acesso aos segredos mais profundos da Criação e à mente de Deus. E a língua em comum entre homem e Deus seria a matemática.
Após várias tentativas frustradas, Kepler obteve a solução que tanto almejava. Na época, só eram conhecidos seis planetas, de Mercúrio a Saturno. Urano e Netuno, invisíveis aos olhos, só foram descobertos bem mais tarde. Kepler, numa visão genial, imaginou que o cosmo seria organizado a partir dos cinco sólidos platônicos, os cinco objetos mais simétricos que existem em três dimensões. Conhecemos bem dois deles, o cubo e a pirâmide (tetraedro). Kepler entendeu que, ao colocar um sólido dentro do outro, como aquelas bonecas russas, com esferas entre cada um deles, poderia acomodar apenas seis planetas: Sol no centro; esfera (Mercúrio); sólido; esfera (Vênus); sólido; esfera (Terra); sólido etc. Portanto, o número de planetas seria decorrente do número de sólidos perfeitos!
Kepler foi além. Como os sólidos obedecem às regras da geometria, seu arranjo determina também as distâncias entre si e, portanto, entre as esferas que os cercam. Experimentando com padrões diferentes, Kepler encontrou um que previa as distâncias entre os planetas com uma precisão de 5% -quando comparado com os dados astronômicos da época, um feito sensacional.
Para um homem que acreditava profundamente num Deus matemático, criador da ordem cósmica, nada mais natural do que uma solução geométrica. Kepler via seu arranjo como a expressão do sonho pitagórico de obter uma explicação geométrica para os mistérios do mundo. Para ele, essa era a teoria final.
Podemos aprender algo com Kepler. Soubesse ele da existência de outros planetas, Urano e Netuno, como teria reagido? Certamente, seu sonho de uma ordem geométrica para o Cosmo dependia do que se sabia na época. Seu erro foi ter dado ao estado do conhecimento empírico do mundo uma finalidade que não existe. Para Johannes Kepler, era inimaginável que o Cosmo pudesse se desviar de sua estrutura geométrica. No entanto, sabemos que nosso conhecimento do mundo é limitado, e será sempre.
Por isso, devemos julgar declarações sobre teorias de tudo ou teorias finais com enorme ceticismo. A história nos ensina que o progresso científico caminha de mãos dadas com nossa habilidade de medir a Natureza. Achar que a mente humana pode imaginar o mundo antes de medi-lo pode ocasionalmente dar certo. Mas, em geral, leva a mundos que existem apenas na imaginação.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Tudo se deu durante uma aula que ministrava para um punhado de estudantes desinteressados. Quando explicava as conjunções dos planetas Júpiter e Saturno, Kepler se perguntou se o fato de Saturno estar aproximadamente duas vezes mais longe do Sol do que Júpiter era sintoma de uma ordem mais profunda: talvez a estrutura cósmica seguisse as regras da geometria. Fosse esse o caso, a mente humana teria acesso aos segredos mais profundos da Criação e à mente de Deus. E a língua em comum entre homem e Deus seria a matemática.
Após várias tentativas frustradas, Kepler obteve a solução que tanto almejava. Na época, só eram conhecidos seis planetas, de Mercúrio a Saturno. Urano e Netuno, invisíveis aos olhos, só foram descobertos bem mais tarde. Kepler, numa visão genial, imaginou que o cosmo seria organizado a partir dos cinco sólidos platônicos, os cinco objetos mais simétricos que existem em três dimensões. Conhecemos bem dois deles, o cubo e a pirâmide (tetraedro). Kepler entendeu que, ao colocar um sólido dentro do outro, como aquelas bonecas russas, com esferas entre cada um deles, poderia acomodar apenas seis planetas: Sol no centro; esfera (Mercúrio); sólido; esfera (Vênus); sólido; esfera (Terra); sólido etc. Portanto, o número de planetas seria decorrente do número de sólidos perfeitos!
Kepler foi além. Como os sólidos obedecem às regras da geometria, seu arranjo determina também as distâncias entre si e, portanto, entre as esferas que os cercam. Experimentando com padrões diferentes, Kepler encontrou um que previa as distâncias entre os planetas com uma precisão de 5% -quando comparado com os dados astronômicos da época, um feito sensacional.
Para um homem que acreditava profundamente num Deus matemático, criador da ordem cósmica, nada mais natural do que uma solução geométrica. Kepler via seu arranjo como a expressão do sonho pitagórico de obter uma explicação geométrica para os mistérios do mundo. Para ele, essa era a teoria final.
Podemos aprender algo com Kepler. Soubesse ele da existência de outros planetas, Urano e Netuno, como teria reagido? Certamente, seu sonho de uma ordem geométrica para o Cosmo dependia do que se sabia na época. Seu erro foi ter dado ao estado do conhecimento empírico do mundo uma finalidade que não existe. Para Johannes Kepler, era inimaginável que o Cosmo pudesse se desviar de sua estrutura geométrica. No entanto, sabemos que nosso conhecimento do mundo é limitado, e será sempre.
Por isso, devemos julgar declarações sobre teorias de tudo ou teorias finais com enorme ceticismo. A história nos ensina que o progresso científico caminha de mãos dadas com nossa habilidade de medir a Natureza. Achar que a mente humana pode imaginar o mundo antes de medi-lo pode ocasionalmente dar certo. Mas, em geral, leva a mundos que existem apenas na imaginação.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Assinar:
Postagens (Atom)