Estava mais do que na hora de usar a lupa da psicologia evolutiva para elucidar as origens da religião. A fé, afinal, é um prato apropriado para o cardápio dos que tentam explicar a mente com base na teoria evolutiva. Ela parece ser um universal humano, ou seja, aquele tipo de comportamento presente em qualquer sociedade, no tempo e no espaço. E, se é um traço universal, provavelmente foi favorecido e mantido pela seleção natural. O raciocínio funciona. Mas o livro "The Faith Instinct" vai com sede demais a esse pote.
Que o leitor não entenda mal. A obra do britânico Nicholas Wade, jornalista de ciência do "New York Times", consegue alinhavar de forma clara as principais pesquisas sobre a origem do "instinto da fé" do título. O problema é que esse tipo de estudo ainda está engatinhando e, na ânsia de apresentar um cenário evolutivo "vencedor", que deixe claro por que a religião surgiu, Wade passa por cima das explicações alternativas, das nuances e do que não se encaixa em sua visão pré-fabricada do tema. O resultado são generalizações um bocado especulativas, que o autor martela capítulo após capítulo, na esperança de que o leitor acabe por aceitá-las.
SacolejoConforme argumenta Wade, quando o comportamento humano moderno surge (entre 50 mil e 100 mil anos atrás), as manifestações religiosas parecem vir a reboque. As primeiras formas de arte e de ferramentas complexas aparecem lado a lado com coisas como funerais deliberados, incluindo "oferendas" (adornos e ossos de animais), e pinturas que retratam misteriosos seres metade pessoas e metade animais. Seriam indícios de uma crença no pós-vida e na capacidade mística de transitar entre os reinos humano, animal e espiritual, como ainda fazem os xamãs dos povos tradicionais de hoje.São justamente esses povos, em especial os aborígines australianos e os san (ou bosquímanos) do sul da África, que inspiram o autor a dar seu passo seguinte. Como os rituais das tribos modernas de caçadores-coletores estão fortemente ligados a danças comunais, nas quais todo o grupo participa durante horas a fio, com resultados como transes e visões místicas, Wade propõe que a "religião ancestral" da humanidade era esse tipo de dança.
Aliás, para ele, música, dança, linguagem e religião teriam evoluído juntas, formando um complexo de comportamentos cuja principal função era garantir a coesão social de cada grupo, para que fosse possível superar outras tribos em combate. Os transes gerados pela dança exaustiva levariam à crença nas entidades sobrenaturais "vistas" durante o êxtase e, de quebra, produziriam um forte senso de união entre os participantes do sacolejo. Os grupos mais afinados com essa propensão ao transcendente teriam obtido uma considerável vantagem reprodutiva e de sobrevivência em relação às tribos menos extáticas, até a religião se propagar pela espécie.A reconstrução da "religião dançarina" original até faz sentido diante dos (poucos) indícios disponíveis, mas Wade entra em terreno dúbio quando aposta, juntamente com uma minoria de biólogos evolutivos, que a seleção natural poderia atuar no nível de grupos, e não no de indivíduos, como diz a maior parte dos cientistas hoje.O problema aqui é que grupos humanos -em especial tribos em guerra, como no cenário traçado pelo livro- não se reproduzem em bloco, mas como indivíduos. Supostas tendências genéticas "religiosas", que levariam ao sacrifício em batalha em nome do "bem maior", seriam simplesmente perdidas com a morte de seus possuidores. Desse ponto de vista, a seleção natural seria implacável contra os religiosos, e não a favor deles. De fato, os grupos com maior proporção de religiosos poderiam até obter mais sucesso na competição com outras tribos. Mas, paradoxalmente, as chances de multiplicação do "gene da fé" seriam muito baixas.
A rigor, seria perfeitamente possível traçar uma análise evolutiva com base nesse princípio: a religião, enquanto "unidade" cultural, é que estaria sendo selecionada nos confrontos, e não os corpos e genes de seus fiéis. Contudo, ao adotar um paradigma muito rígido, Wade nem chega a mencionar essa possibilidade.Ele também quase não toma conhecimento da outra grande vertente das pesquisas sobre a evolução da religiosidade, que encara a crença no sobrenatural como um subproduto de outras capacidades mentais humanas as quais, essas sim, teriam sido moldadas pela seleção natural, tais como a propensão para detectar outras mentes no mundo circundante.A análise que Wade faz da transformação das religiões no mundo pós-Idade da Pedra também é questionável. Ele associa, por exemplo, o "fim da dança" (ou seja, dos rituais comunais e igualitários dos caçadores-coletores) com o surgimento da agricultura e da desigualdade social. Nesse ponto, a ascensão de castas sacerdotais teria levado à monopolização do sagrado. O autor esquece, porém, que sociedades com considerável grau de hierarquização e complexidade, como a grega antiga, eram um bocado relaxadas quanto ao ofício sacerdotal -sem escrituras sagradas, rituais de ordenação ou mesmo monopólio dos sacrifícios de animais.
Apesar de tudo, a conclusão do livro talvez tenha alguma permanência: um apelo para que as religiões saibam incorporar o que a ciência descobriu sobre a natureza e a evolução do homem em suas próprias narrativas do sagrado.
LIVRO - "The Faith Instinct", de Nicholas Wade; Penguin Press, 310 págs., US$ 25,95
REINALDO JOSÉ LOPES – Folha de São Paulo, 18.04.2010
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