segunda-feira, 24 de maio de 2010

Nietzsche e o Nascimento da Tragédia - no YouTube

      Ontem, navegando como quem não quer nada dei de cara com esse vídeo. É um programa sobre o livro do Nietzche que está sendo resenhado aqui debatido pelo excelente Paulo Ghiraldelli Jr e apresentado por um âncora meio surtado. Excelente programa de Filosofia este Loucuras Filosóficas. Veja no link:

http://www.youtube.com/watch?v=m_oaT_tAzgE

sábado, 22 de maio de 2010

Édipo e a Esfinge

Nietzsche e o Nascimento da Tragédia

        A edição deste texto é acompanhada por um prefácio do próprio autor construído anos mais tarde no qual ele avalia essa sua obra de juventude. Começa por chamá-lo de bizarro e mal acessível. Apresenta-nos a tese principal da obra (o nascimento da tragédia a partir do espírito da música) para, em seguida, cobrir-nos de indagações.  O que levou os gregos a necessitarem da tragédia? Seria o pessimismo um sinal de declínio civilizatório? O que foi o mito trágico? Qual o papel do socratismo e de seu filho - o homem teórico - na morte da tragédia? E mais: é o cientificismo, obra do homem teórico, uma tentativa malograda de curar o pessimismo?
       Nietzsche afirma que, ao escever o livro, deu de cara com o problema da ciência, problema que também ocupará suas discussões e servirá para mostrar os frutos mediocrizantes e banalizadores do socratismo entre nós. Embora afirme  que, dezesseis  anos depois, o livro lhe pareça estranho, pesado, sentimental e, até, desagradável, reconhece sua ousadia em querer "ver a ciência com a ótica do artista, mas a arte, com a da vida..."
      Reconhece, ainda, que o livro é para inciados e para aqueles que "foram batizados na música", veículo do dionisíaco. Dezesseis anos passados, Nietzsche revê a eloqüência do texto, mas mantém a pergunta sobre a necessidade da tragédia.
      Inquire se o anseio grego pela beleza se sustenta na relação desse povo com a sensibilidade, com a dor. Neste caso, então, o anseio pelo feio, pelo mito trágico, pelo que há de mais aniquilador e fatídico, deve ser buscado onde?
      Retomando o prefácio da Richard Wagner, Nietzsche argumenta que é a arte, não a moral, a atividade metafísica por excelência e só enquanto fenômeno estético a existência do mundo se justifica. Assim, o artista é colocado como um 'deus', inconsiderado  e amoral, que, em seu prazer e autocracia, em razão da necessidade de se livrar da abundância, da superabundância e do sofrimento, constrói e destrói mundos.
      Nesse prefácio posterior, o autor reconhece, no pendor antimoral do txto, um precvavido e hostil silêncio em relação ao cristianismo, religião que "foi desde o início, essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarçava, apenas  se ocultava, apenas se enfeitava sob a crença  em 'outra' ou 'melhor' vida. O ódio ao 'mundo', a maldição dos fetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-de-cá" (p. 19). Essa afirmação dos valores morais no crisitnaismo é vista, então, como uma ds principais  formas de uma vontade de declínio. Para o autor, em suma, o livro é um libélulo contra a moral, a favor do insitinto de vida, configurando-se numa contradoutrina essencialmente artística e contracristã, denominada dionisíaca.
    Por fim, Nietzche reconhece seus erros de interpretação das leituras, feitas à época, das obras de Kant e Schopenhauer. Reconhece que este último lhe dizia uma coisa sobre o espírito trágico, enquanto Dionísio lhe afiormava outra, ou seja, o espírito trágico não conduz à resignação. Um segundo erro, para o autor, são suas esperanças no tocante à música alemã (O Caso Richard Wagner) e ao 'ser alemão', cujo caminhar para uma sociedade democrática revelava-se uma "passagem para a mediocrização acomodante" (p. 21). Entretanto, o grande ponto de interrogação dionísíaco permanece: Como deveria ser composta uma música dionisíaca?
    O livro que se diz contra o romantismo, pergunta o autor, não é ele mesmo um livro romântico e, portanto, anti-helênico? Nietzsche termina esse prefácio com Zaratustra e seu riso santo. Particularmente, eu não percebi no livro esse asco romântico paontado posteriormetne pelo autor. Percebi,sim, uma força nas palavras que só um espírito  jovem em extâse é capaz de produzir. Realmente, Dionísio estava com ele. Apolo também. 
[to be continued]
Fernanda Meireles

Nietzsche e o Nascimento da Tragédia - II

         Vamos ao livro. A obra divide-se em 25 partes, bem ao costume do autor, com títulos numéricos e palavras-chave, no sumário. A obra inicia-se com o autor defendendo que o desenvolvimento da arte deve-se à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco. Essa duplicidade, no mundo helênico parte da contraposição de origens e objetivos entre as artes apolínea do figurador plástico e a arte dionisíaca do músico. Ese incitar mútuo e esse caminhar lado a lado, num ato da 'vontade' helênica, geraram um emparelhamento cujo fruto foi a tragédia grega.
        O jovem Nietzsche parte daquilo que ele chama 'dois universos artísticos' - o sonho e a embriaguez, correspondentes, a seu ver, aos universos apolíneo e dionisíaco, respectivamente. Começa por abordar o sonho, universo apolíneo no qual artistas plásticos e poetas vão buscar sua inspiração. Trata-se do uiverso da aparência, da forma. O artista agiria, portanto, como o filósofo, ao observar as formas desse universo e usá-las na interprertação e na ação do viver. Apolo, enquanto deus configurador, é também um deus divinatório. Ao dar forma, permite a interpretação e a  ação.
       Uma marca da inteligência visionária de Nietzsche é que, ao falar do universo do sonho, faz referência ao "fundo comum de todos nós" (p. 29), numa alusão antecipatória do que viria a ser conceituado como inconsciente coletivo. Porém, a ação configuradora de Apolo encontra um limite naquilo que a imagem onírica não pode ultrapassar, caso em que se derivaria para o patológico. O olho apolíneo deve ser solar e configurador, para que não se perca no mar de imagens revoltas que afloram daquele fundo comum. Daí, Apolo ser tomado como o principium individuatonis - o princípio de individuação. Apolo é o endeusamenteo desse princípio dado que esse processo é a meta visada pelo Uno Primordial. Ele é sua libertação através da aparência. É preciso tomar forma e, por isso, é necessário a medida. Por isso, o "Conhece-te a ti mesmo" é acompanhado do "Nada em demasia".
       Se o princípio da individuação se rompe, terror e êxtase apoderam-se do ser humano. Está-se no território do dionisíaco cuja intensidade rompe as barreira sdo indivíduo, levando à integração despersonalidora com o Uno Primordial. Nesse território, a natureza e seu filho perdido - o homem - reconciliam-se. Na união, o homem se sente 'deus', obra de arte para a satisfação do Uno.
      Como ponto de confluência desses dois impulsos, o artista se torna onírico e extático. O influxo apolíneo revela-lhe seu estado de união profunda com o Uno, seu estado extático. É a forma produzida pelo sonho revelando ao sonhador seu estado presente. Entretanto, é importante lembrar que o grego dionisíaco difere do bárbaro dionisíaco justamente por sua contraface apolínea.
      Essa reconciliação entre Apolo e Dionísio permite transformar o rompimento do princípio de inividuação em algo artístico. permire que o grego apolíneo receba o ditirambo dionisíaco com assombro e temor de que aquilo, afinal, possa ser compreensível sob as formas manifestadas por Apolo. A música de Dionísio, a forma de Apolo.
     Mas antes de elaborar a questão da tragédia, Nietzsche desconstrói a cultura apolínea em busca de suas bases. Inicia afirmando que no encontro com os deuses  olímpicos só há uma opulenta e triunfante existência, onde tudo é divino, sem bem ou mal.Nietzsche mostra que, para sobreviver, para resistir às froças titânicas da natureza, ao destino implacável, os gregos tiveram que colocar entre eles e a vida um sonho - a criação onírica do Olimpo e seus habitantes.
     Os gregos precisaram criar os deuses, produziram a teogonia olímpica por meio do impulso apolíneo da beleza.  Num espelho, a existência dos deuses legitima a vida humana.
      A unidade entre o ser humano  a natureza produziu, na cultura grega, o "ingênuo" (aquele que crê na beleza da aparência) na arte, mas a um alto preço: era preciso  derrubar titãs, matar monstros, vencer as terríveis e profundas considerações sobre o mundo. Só através da froça da forma onírica, essa batalha pode ser levada  a efeito. Só por meio do triunfo da ilusão apolínea, Homero pode ser compreendido. "Nos gregos a 'vontade' queria, na transfiguração do gênio e do mundo artístico, contemplar a si mesma: para glorificar-se, suas criaturas precisavam sentir-se dignas de glorificação, precisavam rever-se numa esfera superior, sem que esse mundo perfeito da introvisão atuasse como imperativo ou como censura" (p. 38).

Apolo

Nietzsche e o Nascimento da Tragédia - III

        O mundo apolíneo do grego, construído sobre a aparência e sobre a amedida, sofre duro baque com a chegda do culto dionisíaco, mas não perece. A arte dórica foi seu acampamento de guerra. A união entre esses dois impulso dá origem à tragédia ática.
        Fechando mais sua investigação, Niestzsche mostra que os poetas Homero e Arquíloco devem ser considerados os pais da poesia grega. De naturezas muito distintas, os dois poets representam fontes díspares dentro da dultura grega. Homero, o artista naïf (ingênuo), sonhador, apolíneo - o artista épico, contrapõe-se ao belicoso Arquíloco, contraditório, ébrio, dionisíaco -  o artista lírico. Vemos, dese modo, que o autor defende o universo dionisíaco como terra mater do poeta lírico, o qual não é coberto adequadamente pelo termo técnico de poeta subjetivo. Sua subjetividade se encontra destruída no encontro dionisíaco com  o Uno Primordial. Quem canta não é Arquíloco mais, mas sim Dionísio que, usando das formas plásticas configuradoras de Apolo,  dá voz ao centro-motor da existência. A subjetividade aqui não tem nada a ver com a personalidade empírica do sujeito no mundo concreto.
       No caso do poeta lírico, trata-se de outra 'eudade': "...ele, como centro motor daquele e mundo, precisa dizer  'eu': só que essa 'eudade' (Ichheit) não é a mesma que a do homem empírico-real, desperto, mas sim a única 'eudade' verdadeiramente existente (seiende) e eterna, em repouso no fundo das coisas... Arquíloco, o homem apaixondamente ardoroso, no amor e no ódio, é apenas uma visão do gênio, que já não é Arquíloco, porém o gênio universal, e exprime simbolicamente seu sofrimento primigênio naquele símile do homem Arquíloco"(p. 45). 
        O conhecer se nos apresenta em estado puro, em força aniquiladora, à qual a personalidade empírica não resiste. O sujeito egoista não constitui, por isso, o sujeito artístico, ao contrário, é um adversário da arte. Quando liberto do querer egocêntrico pode, então, o sujeito ser o meio de manifestação da existência e através dessa manifestação redimir-se e ampliar-se. E Nietzsche vai mais longe ao propor que devemos nos lembrar sempre de que somos, para o criador, imagens e projeçoes artísticas, de que só como fenômeno estético nossa existência e o mundo podem ser justificados. É maravilhoso comprender as coiss sob esse viés. Traz a existência humana à dimensão da beleza e impõe-nos com uma responsabilidade existencial suprema: fazer da sua vida o melhor que deve ser feito, carregar nas cores, construir harmonias e dissonâncias, verter a alma universal no canto individual.
        Retomando Arquíloco, o autor afirma que os estudos sobre a Grécia mostram que foi ele o introdutor da canção popular na literatura. Essa canção popular, na verdade, é um vestígio da união do apolíneo e do dionisíaco. Nietzsche argumenta que todo período marcado pela alta produtividade da música popular deveria ser considerado um período de forte manifestação do dionisíaco, seu substrato e pressuposto, porque esse tipo de canção constitui um manifestação da melodia primeva aliada à aparência onírica que a poesia lhe proporciona. São palavras do autor: "Na poesia da canção popular vemos, portanto, a linguagem empenhada ao máximo em imitar a música: daí começar com Arquíloco um novo universo da poesia, que contradiz o homérico em sua raiz mais profunda. " (p. 49). Fundamental é ter claro que aquilo que Nietzsche chama de música popular está qualitavamente muito distante e acima do que hoje, nos tempos do pop e outros 'lixos  musicais', é chamado grosseiramente e inadequadamente de música popular. A música da massa é pop, mas não é popular. A civilização ocidental está muito aquém daqueles helenos  e Sócrates é um dos responsáveis por isso. Não somos helenos, somos graeculus, o escravo doméstico, bonachão, espertalhão e democrata.
       Na Grécia do mito trágico, a melodia popular, primeva, é vertida em imagens, em palavras, originando a canção estrófica popular. Nesse cenário, a música aparece como vontade, como vontade de expressão do universo dionisíaco por meio da configuração onírica. O artista, assim, é dionisíaco e apolíneo ao mesmo tempo, ele é o desejante e o contemplador e plasmador de si e do desejo. A linguagem cria um símile daquilo que o dionisíaco carregada e esse símile é freqüentemente revivido/reconstruído porque nunca dá conta de expressar completamente sua carga original.
      

Nietzsche e o Nascimento da Tragédia - IV

     Tratando especificamente do percurso histórico de surgimento da tragédia, Nietzsche mostra que ela teve origem no coro trágico, que antes era apenas coro e nada mais. Para analisá-lo, o autor retoma A .W. Schlegel, cuja proposta é de que o coro é a suma, o extrato da multidão de espectadores. Diferente do público moderno, que mantém constantemente a consciência de que está frente a algo que não possui realidade empírica, o coro trágico trataria as figuras do palco como existências vivas. Discordando desta perspectiva, Nietzsche toma a explicação dada por Schiller. Para este, o coro constituía-se numa muralha colocada entre o espaço cênico e os espectadores de modo a isolar o mundo da tragédia, terreno poético e mítico do mundo real. Isso acabou por desobrigar a tragédia de tomar como tema estados ou situações naturais, numa retratação servil da realidade. Naquele espaço sagrado, delimitado pelo coro, os seres estão vivos, embora noutra dimensão de temporalidade que ali se realiza. É o estado apolíneo do sonho, no qual o mundo diurno fica suspenso e participamos de outra vivência com tal carga de realidade que, neste novo mundo, ilógico, fantástico, às vezes assustador, agimos, sofremos, amamos com veracidade estrondosa.
        Na interpretação nietzschiana, o coro assim visto tinha o poder de suspender o homem grego de seu mundo cotidiano e instalá-lo numa vivência de unidade com a natureza, mostrando-lhe que, apesar do mundo fenomênico, de mudanças constantes, existe uma realidade anterior atemporal e indestrutível. No viver o teatro, o homem suspende-se deste mundo para voltar a ele reconstituído, não sem, é lógico, um certo mal-estar dada a contemplação da essência das coisas e de sua pequenez e finitude frente à força, ao absurdo e à verdade da existência. Esse mal-estar, como em Hamlet, leva o homem a questionar sua atuação no mundo. A única saída para isso é a arte. Ela é quem salva o homem do mal-estar da contemplação. “Só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo.” (p. 56). A arte grega é salva, então, pelo coro satírico do ditirambo. E não há como deixar de mencionar aqui Fernando Pessoa e seu Primeiro Fausto:
“.....................................
É o horror dos horrores esse horror
De haver d’alma um estado, aquele estado
Em que o mistério lhe penetra o abismo,
E não haver palavras ou idéias
Que atinjam esse estado ou comuniquem
D’ideia a idéia o que passa
De vago e horroroso
....................................”
     O coro satírico não era uma cerca divisória, mas uma linha entre o mundo empírico e o universo dionisíaco que se realizava no palco sob os auspícios de Apolo. E, na sua performance, os sátiros servidores de Dionísio conseguiam conquistar a platéia transformando-a em espectadores dionisíacos, espectadores extáticos, anulando qualquer contraposição entre coro e público e, desse modo, todos participavam da representação. Contribuía pra isso a própria forma arquitetônica do teatro grego, local de representação, de culto do dionisíaco. Indo além: no ato de servir, o coro criava a cena de instanciação do divino que, por sua vez, legitimava a existência do coro. O coro gerava a cena e a ação. Essa é a origem do drama, que se distingue do épico, cuja natureza é essencialmente apolínea.

Fernanda Meireles

Nietzsche e o Nascimento da Tragédia – V

 
     Vamos começar mostrando, aqui, o tratamento que Nietzsche dá ao herói na tragédia por meio da contraposição entre Édipo e Prometeu. Inicialmente, o autor afirma que os heróis são as máscaras apolíneas através das quais se pode olhar no mais intimo e horrorosa da natureza. Essas máscaras permitem-nos olhar este íntimo sem nos cegarmos. Édipo é a figura que, embora nobre e sábia, não consegue escapar de seu destino, de seus erros e da miséria. Seus sofrimentos levam-no, já na velhice (Édipo em Colono), a um estado de serenojovialidade. Isso nos vem dizer que seu comportamento puramente passivo leva-o a uma suprema atividade que se estende além da vida, enquanto sua ação apenas o encaminha  à passividade (Se ele não tive resolvido sair de casa para fugir da maldição, mas ao sair, ao agir, ele desencadeia um estado de coisas que o encaminham ao estado passivo – de sofrer o destino).
            Segundo Nietzsche, enquanto Édipo corresponde á glória da passividade, Prometeu de Ésquilo constitui a glória da atividade. Para nos evidenciar isso, incia com um belo trecho de Goethe:
            Aqui sentado, formo homens
            À minha imagem,
            Uma estirpe que seja igual a mim,
            Para sofrer, para chorar,
            Para gozar, para alegrar-se
            E para não te respeitar,
            Como eu!
            O homem, agora, em seu status titânico, ousa desafiar os deuses em nome da justiça e, assim, conquista sua cultura e sua autonomia, dono agora da existência e dos limites desta – ele [o homem] possui o fogo. Antecipa-se, com isso, o crepúsculo dos deuses. Nietzsche defende que, com Ésquilo, fica claro que o heleno (como chamava os gregos anteriores ao socratismo) e, especialmente, o artista heleno, “experimentava com respeito às divindades um obscuro sentimento de dependência recíproca e precisamente no Prometeu de Ésquilo tal sentimento está simbolizado” (p.66). O artista heleno, por meio de um titã ousado, atreve-se a cobrar dos deuses sua parte obtida por meio da expiação pelo sofrimento eterno. Mesmo que se sofra a vida toda é direito humano possuir o fogo. Édipo é o santo que aceita o destino e expia sem nada dizer; Prometeu é o herói que ousa pedir sua parte na cota das criaturas mesmo que pague caro por ela.
            O autor postula a hipótese de que este mito tenha, para o heleno, a mesma significação que tem, para o semítico/judaico-cristão, o pecado original. Em suma: o desafio à divindade é o pecado original pelo qual se paga a vida toda, todo homem e toda mulher. O sacrilégio e a aceitação de suas conseqüências é a única saída que resta ao homem. Entretanto há uma diferença entre o tratamento semítico (cristão) e o tratamento grego: A narrativa semítica coloca o sacrilégio como fruto da mentira, da cobiça, da sedução. Para os gregos, trata-se de um ato de virtude, de cobrança, uma afirmação de dignidade, uma necessidade para aquele que “aspira ao titânico” (p. 68). Há também, nessa configuração narrativa grega, um elemento dionisíaco.
         Apolo, quando conduz os seres à singularidade, estabelece limites, impõe exigências de autoconhecimento e de comedimento. Essa forma se congelaria caso o elemento dionisíaco, motivado pela aspiração titânica, não movesse o homem sempre a ser, nem que seja por momentos, maior do que esta forma. Na metáfora de Nietzsche, a maré alta do lago, reformula seu próprio movimento e impede sua estagnação. São também as águas do Nilo fertilizando anualmente suas margens, mantendo a prosperidade daqueles que dela dependem. O inconsciente deve regularmente fertilizar o consciente para que possamos crescer. O ego Prometeu necessita roubar o sagrado mesmo que pague por isso. Somos a tragédia e o palco onde se dá.
         Nietzsche mostra ainda que, ao mesmo tempo em que Prometeu é uma máscara dionisíaca,  é também, em seu afã de fazer justiça ao humano, um personagem apolíneo. Ele é, portanto como nós, um ser de dupla natureza. 
     O sacrifício de Dionísio, representado na tragédia grega, é responsável pela imagem idealizada da personagem central (Édipo, Prometeu...): “...o único Dionísio verdadeiramente real aparece numa pluralidade de configurações , na máscara de um herói lutador e como que enredado nas malhas da vontade individual. Pela maneira como o deus aparecente fala e atua, ele se assemelha a um indivíduo que erra, anela e sofre: e o fato de ele aparecer com tanta precisão e nitidez épicas é efeito do Apolo oniromante que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco...” (p. 69). Esse Dionísio é o mesmo dos Mistérios, aquele despedaçado pelos Titãs e ressurgido como Zagreus. Seu despedaçamento e seu renascimento simbolizam o processo de individuação, um processo crístico. Nietzsche reafirma que a arte é a única possibilidade jubilosa de um resgate da unidade anterior, perdida com a individuação. 

domingo, 16 de maio de 2010

A natureza das leis

O que nós, cientistas, estamos querendo dizer quando falamos em "leis da natureza"? A questão é bem mais complicada do que parece ser. Não será no curto espaço desta coluna que farei jus à ela, mas temos que começar de algum lugar. Aí vai.
Autoridades tanto na ciência quanto na filosofia têm posições antagônicas com relação à natureza das leis da natureza. Antes de apresentar minhas opiniões, eis algumas outras.
Max Planck, grande físico alemão que inventou o conceito do quantum em 1900 e ganhou o prêmio Nobel da Física em 1918, escreveu que "existe um mundo real, e ele é independente dos nossos sentidos".
Para ele, "as leis da natureza não foram inventadas pelo homem, mas sim forçadas sobre ele pelo próprio mundo natural. São a expressão de uma ordem racional do mundo".
Planck acreditava que não inventamos essas leis, mas que as descobrimos. Se seres extraterrestres existissem, portanto, descobririam as mesmas leis. Poderiam representá-las de forma diferente, mas sua essência seria idêntica.
Essa postura supõe a existência de um saber universal: existe um único corpo de conhecimento que, dado tempo suficiente, vai ficando cada vez mais claro.
A posição de Planck ressoa com a dos que acreditam que Deus criou o mundo e suas leis. De fato, a primeira menção das leis da natureza aparece num texto de Descartes, em que ele afirma que as leis da natureza são uma criação divina.
A maioria dos pensadores, entretanto, discorda da visão de Planck. O próprio Albert Einstein dizia que nossas teorias são "ficções", no sentido de que podem existir duas ou mais explicações equivalentes sobre o mesmo fenômeno. "O caráter fictício das [teorias científicas] fica óbvio quando vemos que duas diferentes, cada qual com as suas consequências, concordam em grande parte com a experiência", disse.
O físico americano Richard Feynman escreveu que "como nada pode ser expresso precisamente, toda lei científica, todo princípio cientifico, toda asserção sobre os resultados de uma observação é uma espécie de sumário que deixa de lado os detalhes". Ou seja, nossas teorias são apenas aproximações da realidade.
Os filósofos Karl Popper e Thomas Kuhn vão ainda mais longe (Kuhn talvez um pouco longe demais). Popper escreveu que teorias científicas "não são um resumo de observações mas invenções-conjecturas propostas para serem julgadas e, se discordarem das observações, eliminadas".
Entrando no debate, o que podemos dizer sobre as leis da natureza?
Não há dúvida de que observamos padrões regulares na natureza, do micro ao macro. Alguns desses padrões podem ser expressos matematicamente. Porém, quando físicos afirmam, por exemplo, que "a energia é conservada", sabem que essa lei só é estritamente válida dentro da precisão de suas medidas.
E mesmo que a precisão de nossos instrumentos e medidas melhore com o passar do tempo, sempre haverá um limite. Consequentemente, jamais podemos afirmar que a "energia é conservada" em termos absolutos.
De fato, na prática não existem asserções de caráter absoluto, nem mesmo no contexto das ciências físicas. Construímos modelos que descrevem a realidade que medimos da melhor maneira possível.
Como humanos, vemos o mundo sempre fora de foco. Os óculos que inventamos melhoram a qualidade da imagem, mas sempre existirão detalhes que escaparão ao nosso olhar. O mundo é o que vemos dele.



MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "Criação Imperfeita"

domingo, 9 de maio de 2010

O fetiche de quantidade


Metas de produtividade e burocracia acadêmica diminuem o potencial de pesquisas científicas

A criação de conhecimento não pode ser medida somente pelo número de trabalhos escritos pelos pesquisadores, como é a tendência atual no Brasil

A cada tanto tempo, volta-se a discutir como deve ser avaliado o trabalho dos professores. O grande número de pessoas envolvidas nos diversos níveis de ensino, assim como o de artigos e livros que materializam resultados de pesquisa, tem determinado uma preferência por medidas quantitativas.
Se estas podem trazer informações úteis como dado parcial para comparar resultados de escolas em vestibulares ou o desempenho médio de alunos em determinada matéria, sua aplicação como único critério de "produtividade" na pós-graduação vem gerando -a meu ver, pelo menos- distorções bastante sérias.
Não é meu intuito recusar, em princípio, a avaliação externa, que considero útil e necessária. Gostaria apenas de lembrar que a criação de conhecimento não pode ser medida somente pelo número de trabalhos escritos pelos pesquisadores, como é a tendência atual no Brasil. Tampouco me parece correta a fetichização da forma "artigo em revista" em detrimento de textos de maior fôlego, para cuja elaboração, às vezes, são necessários anos de trabalho paciente.
A mesma concepção tem conduzido ao encurtamento dos prazos para a defesa de dissertações e teses na área de humanas, com o que se torna difícil que exibam a qualidade de muitas das realizadas com mais vagar, que (também) por isso se tornaram referência nos campos respectivos.
O equívoco desse conjunto de posturas tornou-se, mais uma vez, sensível para mim ao ler dois livros que narram grandes aventuras do intelecto: "O Último Teorema de Fermat", de Simon Singh (ed. Record), e "O Homem Que Amava a China", de Simon Winchester (Companhia das Letras).
O leitor talvez objete que não se podem comparar as realizações de que tratam com o trabalho de pesquisadores iniciantes; lembro, porém, que os autores delas também começaram modestamente e que, se lhes tivessem sido impostas as condições que critico, provavelmente não teriam podido desenvolver as capacidades que lhes permitiram chegar até onde chegaram.

Everest da matemática
O teorema de Fermat desafiou os matemáticos por mais de três séculos, até ser demonstrado em 1994 pelo britânico Andrew Wiles. O livro de Singh narra a história do problema, cujo fascínio consiste em ser compreensível para qualquer ginasiano e, ao mesmo tempo, ter uma solução extremamente complexa. Em resumo, trata-se de uma variante do teorema de Pitágoras: "Em todo triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa", ou, em linguagem matemática, a2²=b2²+c2².
Lendo sobre esta expressão na "Aritmética" de Diofante (século 3º), o francês Pierre de Fermat (1601-65) -cuja especialidade era a teoria dos números e que, junto com Pascal, determinou as leis da probabilidade- teve a curiosidade de saber se a relação valia para outras potências: x3³= y3³ + z3, x4 = y4 + z4 e assim por diante. Não conseguindo encontrar nenhum trio de números que satisfizesse as condições da equação, formulou o teorema que acabou levando seu nome -"Não existem soluções inteiras para ela, se o valor de n for maior que 2"- e anotou na página do livro: "Encontrei uma demonstração maravilhosa para esta proposição, mas esta margem é estreita demais para que eu a possa escrever aqui".
Após a morte de Fermat, seu filho publicou uma edição da obra grega com as observações do pai. Como o problema parecia simples, os matemáticos lançaram-se à tarefa de o resolver -e descobriram que era muitíssimo complicado.
Singh conta como inúmeros deles fracassaram ao longo dos 300 anos seguintes; os avanços foram lentíssimos, um conseguindo provar que o teorema era válido para a potência 3, outro (cem anos depois) para 5 etc. O enigma resistia a todas as tentativas de demonstração e acabou sendo conhecido como "o monte Everest da matemática". É quase certo que Fermat se equivocou ao pensar que dispunha da prova, que exige conceitos e técnicas muito mais complexos que os disponíveis na sua época.
Quem a descobriu foi Andrew Wiles, e a história de como o fez é um forte argumento a favor da posição que defendo. O professor de Princeton [universidade americana] precisou de sete anos de cálculos e teve de criar pontes entre ramos inteiramente diferentes da disciplina, numa epopeia intelectual que Singh descreve com grande habilidade e clareza. Não é o caso de descrever aqui os passos que o levaram à vitória; quero ressaltar somente que, não tendo de apresentar projetos nem relatórios, publicando pouquíssimo durante sete anos e se retirando do "circuito interminável de reuniões científicas", Wiles pôde concentrar-se com exclusividade no que estava fazendo.
Por exemplo, passou um ano inteiro revisando tudo o que já se tentara desde o século 18 e outro tanto para dominar certas ferramentas matemáticas com as quais tinha pouca familiaridade, mas indispensáveis para a estratégia que decidiu seguir. Questionado por Singh sobre seu método de trabalho, Wiles respondeu: "É necessário ter concentração total. Depois, você para. Então parece ocorrer uma espécie de relaxamento, durante o qual, aparentemente, o inconsciente assume o controle. É aí que surgem as ideias novas".
Este processo é bem conhecido e costumo recomendá-lo a meus orientandos: absorver o máximo de informações e deixá-las "flutuar" até que apareça algum padrão, ou uma ligação entre coisas que aparentemente nada têm a ver uma com a outra. Uma variante da livre associação, em suma.
Ora, se está correndo contra o relógio, como o estudante pode se permitir isso? A chance de ter o "estalo de Vieira" é reduzida; o mais provável é que se conforme com as ideias já estabelecidas, o que obviamente diminui o potencial de inovação do seu trabalho.

Tarefa hercúlea
Outro exemplo de que o tempo de gestação de uma obra precisa ser respeitado é o de Joseph Needham (1900-95), cuja vida extraordinária ficamos conhecendo em "O Homem Que Amava a China".
Bioquímico de formação, apaixonou-se por uma estudante chinesa que fora a Cambridge [no Reino Unido] para se aperfeiçoar; ela lhe ensinou a língua e, à medida que se aprofundava no estudo da cultura chinesa, Needham foi se tomando de admiração pelas suas realizações científicas e tecnológicas.
Em 1943, o Ministério do Exterior britânico o enviou como diplomata à China, então parcialmente ocupada pelos japoneses. Sua missão era ajudar os acadêmicos a manter o ânimo e a prosseguir em suas pesquisas.
Para saber do que precisavam, viajou muito pelo país e entrou em contato com inúmeros cientistas; em seguida, mandava-lhes publicações científicas, reagentes, instrumentos e o que mais pudesse obter.
Nessxe périplo, Needham se deu conta de que -longe de terem se mantido à margem do desenvolvimento da civilização, como então se acreditava no Ocidente- os chineses tinham descoberto e inventado muito antes dos europeus uma enorme quantidade de coisas, tanto em áreas teóricas quanto no que se refere à vida prática (uma lista parcial cobre 12 páginas do livro de Winchester).
Formulou então o que se tornou conhecido como "a pergunta de Needham": se aquele povo tinha demonstrado tamanha criatividade, por que não foi entre eles, e sim na Europa, que a ciência moderna se desenvolveu?
A resposta envolvia provar que existiam condições para que isso pudesse ter acontecido, e depois elaborar hipóteses sobre por que não ocorreu. Daí a ideia de escrever um livro que mostrasse toda a inventividade dos chineses, tendo como base os textos recolhidos em suas viagens e as práticas que pudera observar.
Embora o projeto fosse ambicioso, a Cambridge University Press o aceitou, considerando que, uma vez realizado, abrilhantaria ainda mais a reputação da universidade.
"Science and Civilization in China" [Ciência e Civilização na China] teria sete volumes, e Needham acreditava que poderia escrevê-lo "num prazo relativamente curto para uma obra acadêmica: dez anos".
Na verdade, tomou quatro vezes mais tempo, e, quando o autor morreu, em 1995, já contava 15 mil páginas. Empreendimento hercúleo, como se vê, que transformou radicalmente a percepção ocidental quanto ao papel da China na história da civilização.
O volume de trabalho envolvido era imenso: de saída, ler e classificar milhares de documentos sobre os mais variados assuntos; em seguida, organizar tudo de modo claro e persuasivo, e por fim apresentar algumas respostas à "pergunta de Needham". Várias pessoas o auxiliaram no percurso (em particular, sua amante chinesa), mas a concepção de base, e boa parte do texto final, se devem exclusivamente a ele.

Monumento
Needham não publicou uma linha de bioquímica durante os últimos 30 anos de sua carreira.
Tampouco tinha formação acadêmica em história das ideias -mas isso não o impediu de, com talento e disciplina, redigir uma das obras mais importantes do século 20.
Se tivesse sido atrapalhado por exigências burocráticas, se tivesse de orientar pós-graduandos, se a editora o pressionasse com prazos ou não o deixasse trabalhar em seu ritmo (o primeiro volume levou seis anos para ficar pronto), teria talvez escrito mais um livro interessante, mas não o monumento que nos legou.
O que estes exemplos nos ensinam é que um trabalho intelectual de grande alcance só pode ser feito em condições adequadas -e uma delas é a confiança dos que decidem (e manejam os cordões da bolsa) em quem se propõe a realizá-lo.
Tal confiança envolve não suspeitar que tempo longo signifique preguiça, admitir que pensar também é trabalho, que a verificação de uma ideia-chave ou de uma referência central pode levar meses -e que nada disso tem importância frente ao resultado final.
Em tempo: um dos motivos encontrados por Needham para o estancamento da criatividade chinesa a partir de 1500 foi justamente a aversão de uma estrutura burocrática acomodada na certeza de sua própria sapiência a tudo que discrepasse dos padrões impostos.
Enquanto isso, na Europa (e depois na América do Norte) a inovação era valorizada, e o talento individual, recompensado. Nas palavras de um sinólogo citado no fim do livro, o resultado da atitude dos mandarins foi que "o incentivo se atrofiou, e a mediocridade tornou-se a norma". Seria uma pena que, em nome da produtividade medida em termos somente quantitativos, caíssemos no mesmo erro.

RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular na Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.Folha de São Paulo, 09/05/2010

sábado, 8 de maio de 2010

Música, física, experimentação


 A música é bifacetada. Como a partícula quântica, que surge às vezes como onda, outras
como corpúsculo, exibindo uma complementaridade intrínseca, a música manifesta dois pólos não-excludentes e intercambiantes: o do entretenimento, mais instintivo e lúdico, e o da perquirição, mais cerebral e metódico. Quando um vem à tona, tende a ensombrar o outro. Mas há entre eles, mais do que conflito e competição, uma dialética de adjuntos, sem síntese vulgar. Eles se compadecem, se tonificam no espaço-tempo físico e humano, na dinâmica inexorável das civilizações.

A urbanização impactante ocorrida na Europa, no início do século XX, veio escoltada por revoluções artísticas e científicas. Na física, eclodiram as teorias relativísticas – a especial e a geral – de Einstein, bem como a mecânica quântica. A relatividade especial mostrou o entrelaçamento de tempo e espaço, e a relevância da luz como constante e limite máximo de velocidade. A relatividade geral introduziu a curvatura associada à gravitação: geometria e campo gravitacional fundindo-se em sua evolução, gerando uma não-linearidade gigantesca. O princípio de incerteza de Heisenberg trouxe a noção de variáveis conjugadas, como posição e momentum (a massa multiplicada pela velocidade). Ao tentarmos medir uma delas, surge uma imprecisão na medida da outra. Bohr qualificou de “complementares” as variáveis ou propriedades que não emergem simultaneamente numa mesma experiência, porém convivem como “opostos” latentes em um processo perdurável de alternâncias, sem solução causal.

A música, nos anos de 1900 e décadas seguintes, foi um território propício à experimentação. Stravinski elaborou construções rítmicas peculiares, e fundou um politonalismo desafiador. Varèse conduziu a pesquisa da percussão e da espacialização do som, produzindo verdadeiros big-bangs de ruídos. Daí resultou um aumento no número de dimensões do espaço musical, semelhante à ampliação das dimensões do espaço físico, investigada, na trilha de Einstein, por matemáticos como Weyl, Kaluza e Klein, que chegaram a ultrapassar a quadridimensionalidade einsteiniana, com a finalidade de abranger outras interações além da gravitação.

Um compositor singular desse período foi Erik Satie. Com humor implacável, melodias e ritmos por vezes singelos, mas sempre funcionais, e harmonias surpreendentes, criou uma dicção personalíssima. Um de seus projetos mais intrigantes/instigantes, a musique d’ameublement, prevê a execução musical como recurso para ambientar eventos, por exemplo exposições de pintura. Música em geral constituída de fragmentos de canções populares, repetidos continuamente, funcionando então tal qual uma cadeira/poltrona confortável (“un bon fauteil”) ou, digamos, um tapete bonito numa sala. A idéia de promover uma interferência entre a apresentação sonora e o acontecimento que ela põe em relevo já é, em si, inusitada para a época (1920). Inaugura um gênero de intervenção que voluntariamente se dissimula para realimentar o ente-evento. E o jogo relacional entre a música despojada e a ação artística “séria” que ela acompanha nos ensina a relativizar a distância entre o que tratamos como puro divertissement e o que tendemos a reverenciar como arte elaborada. Contra-sisudez sati(e)rica...

Igualmente desconcertante foi Charles Ives. Seu instinto indagativo o levou a empregar em uma mesma obra procedimentos por muitos considerados conflitantes. O fato é que ele desenvolveu pioneiramente tanto a área politonal quanto a multirrítmica, evocando neste sentido o dualismo quântico da integração de extremos. Chegou a explorar, inclusive, o microtonalismo, ou seja, a inserção de intervalos menores que o semitom na prática musical. Isto se dá no âmbito da propagação ondulatória clássica (macroscópica), embora o prefixo “micro” sugira uma escala subatômica. Para cada onda sonora há certa freqüência no intervalo audível. Alterando freqüências próximas pertencentes a este intervalo, numa mesma proporção, distinguimos um igual espaçamento nas alturas dos sons. Efetuando subdivisões do semitom tornamos menores as diferenças de freqüência, até não conseguirmos mais distingui-las, pois para cada faixa de valores há uma diferença mínima discernível. Apesar do esgotamento do processo divisório, obtemos um extenso conjunto de notas capaz de motivar combinações que a música ocidental anteriormente desdenhava.

Um dos cultores do universo microtonal no Brasil foi Walter Smetak, suíço radicado na Bahia. Seu trabalho se individualizou e ganhou vulto também por outros fatores, como o da confecção de instrumentos exóticos geradores de novas sonoridades, e o do convívio com músicos da esfera popular, especialmente Caetano Veloso e Gilberto Gil, responsáveis em larga medida pela divulgação de seus experimentos. É sugestivo que atualmente os recursos computacionais promovam uma recuperação do microtonalismo.

A proposta efetiva de reforma estrutural do tonalismo surgiu com Schoenberg, tendo sido adotada por Berg e por Webern. Nesse sistema, construído sobre uma base de doze sons igualmente relevantes, as distâncias entre os tons – os intervalos – não são como os semitons do círculo das quintas tonal. E é possível montar conjuntos de intervalos com as doze notas organizadas em série, com doze classes de alturas, cada uma destas aparecendo só uma vez. Recursos como inversões e transposições asseguram variedade ao método.

A idéia dos tons que têm importância equivalente numa série lembra a de Einstein quanto aos referenciais inerciais. Eles se deslocam em movimento relativo de velocidade constante, e qualquer um deles é igualmente capaz de localizar posições, medir distâncias e intervalos de tempo. Schoenberg, assim como Einstein, concebia espaços multidimensionais.

Num patamar ainda mais avançado situam-se as composições de Webern, introdutor da “melodia de timbres”, repleta de transições não-lineares de “cores” e de permutações de sons e silêncios. As miniaturas webernianas, chegando à duração de alguns segundos, fizeram com que Stravinski se referisse a seu autor como “lapidador de diamantes”. De fato, Webern alcançava a diversidade minimizando intencionalmente o conjunto de parâmetros sonoros e dele extraindo o máximo, o que recorda o sugestivo termo “minimax”, empregado na teoria matemática dos jogos. John von Neumann demonstrou em 1928 que num jogo, fixados certos pressupostos, a trama se desenvolve rumo a um compromisso de otimização entre um mínimo e um máximo.

Confrontando a relativa linearidade da música de Schoenberg com a riqueza timbrística e a eficaz compactação da obra de Webern, nos vem à mente a passagem do espaço-tempo plano para o curvo, da relatividade especial para a geral. Nesta, a curvatura foi eleita para acolher os referenciais não-inerciais (acelerados) e o campo gravitacional, afiançando a ocupação do arcabouço geométrico por meio da matéria-energia (Albert Einstein: The Meaning of Relativity, 1955, Princeton , Princeton University Press).

Na esteira de Webern, o serialismo integral (Boulez, Stockhausen) infiltrou mais parâmetros do som na organização da série. Outras tendências revitalizadoras, ainda, se firmaram a partir do pós-guerra, como as correntes eletroacústica e aleatória (Flo Menezes, org.: Música Eletroacústica, 1996, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo).
John Cage, figura central da música do século XX, escolheu a indeterminação e o acaso como diretrizes de seus trabalhos. Aproximou-se do ideário dos quanta e da ciência do caos. Uma de suas peças, hoje famosa, 4’33” (1952) causou polêmica na época ao fazer emergir a dimensão inquietante do silêncio prolongado, revelando seu potencial, no fundo tão prenhe de informações quanto o “vácuo” do modelo de partículas elementares.
Buscando uma equação que descrevesse o movimento quântico-relativístico do elétron, Paul Dirac desvelou a antimatéria: lacunas não preenchidas em estados de energia negativa. O preenchimento dessas lacunas configura o “vácuo”, ou seja, a ausência de partículas.

A teoria do caos lida com processos de aparência aleatória que ocultam uma ordenação imprevista. Esses fenômenos não são “caóticos” na acepção comum. Tal como na geometria fractal, onde há emergência de padrões que ao final se mostram organizados, em toda a física do caos os comportamentos não se manifestam determinísticos à primeira vista, porém o são, num sentido não convencional. Essa junção do exato com o impreciso é herdeira da revolução quântica.
A música popular brasileira (MPB), criativa e variada desde seus primórdios, já chamava a atenção de Villa Lobos, que dela se utilizou amplamente como matéria-prima e como fonte de inspiração. Gilberto Mendes, outro de nossos compositores eruditos, também demonstrou sempre abertura em relação à MPB, chegando mesmo a incorporá-la na forma de montagens, em estruturas aleatórias (Gilberto Mendes: Uma Odisséia Musical, 1994, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo).

Dois momentos cruciais na MPB foram, como se sabe, a bossa-nova (BN) e o tropicalismo. A primeira procurou descartar a oposição “consonante” X “dissonante”, que vedava às composições o influxo de novos ares. Novas marés assentaram sobre o solo, sob o sol, sambas de notas sós, desafinadas, afinadas com um modo diferente de integrar as funções melódica, harmônica e rítmica. Isto se constata exemplarmente na música de Tom Jobim e nas interpretações de João Gilberto (Brasil Rocha Brito: Bossa Nova, 1960, em Balanço da Bossa e Outras Bossas, de Augusto de Campos, 1978, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva).

O movimento tropicalista, de extração “antropofágica” (Oswald de Andrade) e aberto às expressões culturais da época (geração beatnik, Beatles, pop art, poesia concreta), provocou impacto ao retomar, num contexto sucedâneo, a experimentação capitaneada pela BN. Caetano e Gil, principalmente, com sua arte requintada, colaboraram para fixar parâmetros composicionais inovadores, e para introduzir na MPB instrumentos eletroacústicos e ruídos.

Conforme assinala Augusto de Campos (Informação e Redundância na Música Popular, 1968, no já citado Balanço da Bossa e Outras Bossas) a música vinculada aos veículos de massa, de acordo com a teoria da informação, tem dificuldade de ultrapassar o código médio do ouvinte. As inovações costumam custar perplexidades. Elas se dão mais timidamente quando o repertório do receptor se encontra sedimentado em torno de um número restrito de regras aceitas como dogmas. Isso também vale para boa parcela da área “clássica” ou “erudita”, aquela fatia de mais fácil assimilação, que findou fatalmente incorporada ao mercado. A chamada música de vanguarda traduz uma outra realidade: a da investigação laboratorial, liberta do consumo imediato. Ela pode desdenhar a redundância. Mas se levar isso ao limite, ela atina com a incomunicabilidade. Desatina.

Penso que é salutar para o ouvinte/receptor, dotado de emoções, contradições, instabilidades, a existência das duas faces musicais: uma ligada mais fortemente à previsibilidade (folclore, dança, canção popular urbana), outra buscando escapar à repetição e, postando-se à frente, encarnar a pesquisa pura. Em muitas situações de nossas vidas uma canção simples pode ser mais sedutora que uma peça de vanguarda de alta complexidade. Em outras, de maior introspecção, o “ponto luminoso” propende a deslizar em paralaxe pulsátil para o perfil do fabbro, para o intento do invento.

A explicação freudiana do inconsciente destruiu a imagem determinista do homem. E ainda: a partir de recentes descobertas da neurobiologia cada vez mais se aceita que o cérebro tem, remotamente, origem quântica. Pertence portanto ao planeta da complementaridade, como sempre soube o tao chinês, que inspirou por sinal a sincronicidade de Jung.. É claro que entre a física dos quanta e a vida existem inúmeros enigmas de encadeamento. Apesar disso, a bipolaridade dos conjugados parece expor-se, quantatuagem, ex(er)citar-se, taotocronia, nos atos humanos de criação e de recepção dos signos artísticos/científicos (Roland de Azeredo Campos: Arteciência, 2003, São Paulo, Perspectiva). A convivência e a alternância desses dois modos – um lúdicodionisíacodançante, outro reflexivoapolíneoinquiridor – está, quem sabe, na própria essência do homo sapiens.

Sugestões adicionais de leitura:

António Damásio
: O Mistério da Consciência, 2000, São Paulo, Companhia das Letras.
Augusto de Campos: Música de Invenção, 1998, São Paulo, Perspectiva.
Caetano Veloso: Verdade Tropical, 1997, São Paulo, Companhia das Letras.
Edward Lorenz: A Essência do Caos, 1996, Brasília, Editora da Universidade de Brasília.
Jean & Brigitte Massin: História da Música Ocidental, 1997, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
John Cage: De Segunda a Um Ano, 1985, São Paulo, Hucitec.
Roger Penrose: O Grande, o Pequeno e a Mente Humana, 1998, São Paulo, Editora da Unesp

 Roland Azeredo Campos, disponível em http://www.erratica.com.br