Tratando especificamente do percurso histórico de surgimento da tragédia, Nietzsche mostra que ela teve origem no coro trágico, que antes era apenas coro e nada mais. Para analisá-lo, o autor retoma A .W. Schlegel, cuja proposta é de que o coro é a suma, o extrato da multidão de espectadores. Diferente do público moderno, que mantém constantemente a consciência de que está frente a algo que não possui realidade empírica, o coro trágico trataria as figuras do palco como existências vivas. Discordando desta perspectiva, Nietzsche toma a explicação dada por Schiller. Para este, o coro constituía-se numa muralha colocada entre o espaço cênico e os espectadores de modo a isolar o mundo da tragédia, terreno poético e mítico do mundo real. Isso acabou por desobrigar a tragédia de tomar como tema estados ou situações naturais, numa retratação servil da realidade. Naquele espaço sagrado, delimitado pelo coro, os seres estão vivos, embora noutra dimensão de temporalidade que ali se realiza. É o estado apolíneo do sonho, no qual o mundo diurno fica suspenso e participamos de outra vivência com tal carga de realidade que, neste novo mundo, ilógico, fantástico, às vezes assustador, agimos, sofremos, amamos com veracidade estrondosa.
Na interpretação nietzschiana, o coro assim visto tinha o poder de suspender o homem grego de seu mundo cotidiano e instalá-lo numa vivência de unidade com a natureza, mostrando-lhe que, apesar do mundo fenomênico, de mudanças constantes, existe uma realidade anterior atemporal e indestrutível. No viver o teatro, o homem suspende-se deste mundo para voltar a ele reconstituído, não sem, é lógico, um certo mal-estar dada a contemplação da essência das coisas e de sua pequenez e finitude frente à força, ao absurdo e à verdade da existência. Esse mal-estar, como em Hamlet, leva o homem a questionar sua atuação no mundo. A única saída para isso é a arte. Ela é quem salva o homem do mal-estar da contemplação. “Só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo.” (p. 56). A arte grega é salva, então, pelo coro satírico do ditirambo. E não há como deixar de mencionar aqui Fernando Pessoa e seu Primeiro Fausto:
“.....................................
É o horror dos horrores esse horror
De haver d’alma um estado, aquele estado
Em que o mistério lhe penetra o abismo,
E não haver palavras ou idéias
Que atinjam esse estado ou comuniquem
D’ideia a idéia o que passa
De vago e horroroso
....................................”
O coro satírico não era uma cerca divisória, mas uma linha entre o mundo empírico e o universo dionisíaco que se realizava no palco sob os auspícios de Apolo. E, na sua performance, os sátiros servidores de Dionísio conseguiam conquistar a platéia transformando-a em espectadores dionisíacos, espectadores extáticos, anulando qualquer contraposição entre coro e público e, desse modo, todos participavam da representação. Contribuía pra isso a própria forma arquitetônica do teatro grego, local de representação, de culto do dionisíaco. Indo além: no ato de servir, o coro criava a cena de instanciação do divino que, por sua vez, legitimava a existência do coro. O coro gerava a cena e a ação. Essa é a origem do drama, que se distingue do épico, cuja natureza é essencialmente apolínea.
Fernanda Meireles
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