domingo, 6 de setembro de 2009

Poder celestial

Físico italiano propõe que o conhecimento astronômico de povos antigos ajudava a criar "ambientes sagrados'

Nada mais natural que o sujeito que visita o Equador (país) queira aproveitar para conhecer o Equador (linha imaginária). Os equatorianos aproveitaram esse desejo compreensível para construir o vilarejo turístico de Mitad del Mundo, a 13 km de Quito. Que os gringos não ouçam, mas a verdadeira "metade do mundo" fica algumas centenas de metros ao norte de Mitad del Mundo. Os restos de um monumento pré-colombiano, provavelmente anterior aos incas e de origem incerta, marcam o local exato cruzado pela linha do Equador.
Anedotas irônicas desse naipe pontuam o livro "Mysteries and Discoveries of Archaeoastronomy" ("Mistérios e Descobertas da Arqueoastronomia"), do físico italiano Giulio Magli, professor da Universidade Politécnica de Milão. Um dos principais objetivos de Magli é chacoalhar os preconceitos do leitor e impedir que ele continue a imaginar civilizações antigas como primitivas e pouco sofisticadas, em especial no que se refere ao conhecimento astronômico. Para o pesquisador, nenhum povo do passado merece a alcunha de bárbaro.
Por outro lado, ele é sensato o suficiente para não cometer o erro oposto. Que ninguém espere relatos sobre contatos imediatos do terceiro grau ou tecnologias alienígenas dando uma mãozinha na construção das pirâmides egípcias e maias. Num passeio por quase todas as culturas antigas que deixaram restos monumentais de sua existência -dos menires (grandes postes de pedra) da Bretanha francesa que inspiraram o bonachão Obelix aos desenhos gigantescos de Nazca, no Peru-, Magli mostra como dados astronômicos relativamente precisos foram obtidos e armazenados ao longo de séculos. Às vezes, sem a ajuda de nenhum registro escrito e quase sempre a olho nu ou, no máximo, com o auxílio de poucos instrumentos rudimentares.
PalmeiraUm deles é o egípcio "merkhet", um simples talo de palmeira com uma abertura na ponta, que ajudava o protoastrônomo faraônico (quase sempre um sacerdote) a enquadrar as estrelas que estava observando. Os maias, outro povo famoso pela obsessão com o domínio celeste, tinham um instrumento parecido.Para Magli, boa parte dos grandes monumentos do passado usou esse conhecimento astronômico, em especial o associado com os ciclos anuais ou plurianuais do Sol, da Lua e das principais estrelas, para produzir o que ele chama de "sacred landscapes" (algo como "ambientes sagrados") ou "powerscapes" ("ambientes de poder", trocadilho com "landscape").
Segundo ele, é preciso imaginar os grandes monumentos regidos por alinhamentos astronômicos -as pirâmides de Gizé, no Egito, o círculo de pedra de Stonehenge, no Reino Unido, o "observatório" de El Caracol, na cidade maia de Chichén Itzá, entre outros-, como forma de reproduzir na Terra os eventos celestes. Para os povos que os criaram (em especial as elites que bancavam as construções), também uma forma de canalizar o poder do firmamento em momentos-chave.
Ainda que faraós ou reis maias não acreditassem realmente na comunhão entre soberano e poderes cósmicos, o resultado visual tinha, no mínimo, uma teatralidade impactante, resultando no que Magli chama de hierofania, ou seja, uma manifestação do sagrado.Um dos exemplos mais interessantes envolve o templo principal de Abu Simbel, construído a mando do faraó Ramsés 2º (1279 a.C.-1213 a.C.).
O templo está voltado para o leste. Encarapitados no alto de sua fachada, babuínos esculpidos se voltam para a aurora, com as patas da frente erguidas em sinal de adoração. Todos os anos, em apenas dois dias do ano -22 de fevereiro e 22 de outubro, datas cujo significado simbólico escapa aos estudiosos de hoje-, os raios do Sol nascente atravessam com precisão os corredores que conduzem à capela principal do templo e iluminam, nesta ordem, as estátuas de Amon-Rá, do faraó e de Rá-Horakhti. O design tem o cuidado de evitar que a luz atinja a estátua de Ptah, a única divindade não-solar do quarteto (já que o soberano egípcio também era considerado um deus solar encarnado).Há uma série de outros designs engenhosos como esses espalhados mundo afora, com destaque especial para técnicas que "canalizam" os raios solares em eventos como os solstícios de verão e inverno.
O livro peca apenas quando Magli avança um pouco o sinal com a própria tese, dizendo-se confiante de que as estátuas da ilha de Páscoa ou as linhas de Nazca também correspondem a alinhamentos astronômicos, quando há poucos dados sólidos sobre esses casos. É normal: olhar estrelas deixa qualquer um empolgado.

REINALDO JOSÉ LOPES
Folha de são Paulo, 14.03.2010

LIVRO - "Mysteries and Discoveries of Archaeoastronomy" de Giulio Magli Springer, 444 págs., US$ 27,50

Nenhum comentário:

Postar um comentário