Estamos cercados por uma escuridão perene
O que Stevie Wonder e Lucrécio, o poeta romano que escreveu "A Natureza do Universo", têm em comum? Mais do que você imagina. Na semana passada, enquanto corria perto da minha casa, ouvi a música "Superstition", de Stevie Wonder. O refrão me chamou a atenção: "Quando você acredita em coisas que não entende, então você sofre; a superstição não é o caminho". Eis o que Lucrécio escreveu sobre o mesmo tópico, mais de 2.000 anos atrás: "As pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas por trás das coisas que acontecem na Terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus".
Lucrécio estava propondo um novo modo de pensar o mundo, baseado na filosofia atomística dos pré-socráticos Leucipo e Demócrito. "Pense", diria Lucrécio, "tente encontrar explicações para os fenômenos naturais dentro da própria natureza; não é necessário atribuí-los a causas sobrenaturais". A canção de Stevie Wonder diz algo semelhante, de modo bem mais popular e divertido.
Com a chegada da ciência, os mecanismos da natureza tornaram-se mais transparentes. O papel de Deus como criador e controlador do mundo foi diminuindo de importância: a natureza seguia certas leis racionais, que os homens podiam descobrir. Claro, existiam muitas questões em aberto: a morte, a vida, o mistério da alma e o da criação do mundo.
No final do século 18, a fixação iluminista pela razão começou a falhar. Os românticos acusaram os cientistas de tirarem o encanto da natureza com suas equações, de "desfiarem o arco-íris", nas palavras do poeta John Keats. Na verdade, as coisas não eram tão simples; como escreveu Richard Holmes no excelente "A Era do Encanto" (do inglês "The Age of Wonder"), os românticos tinham enorme fascínio pela ciência, especialmente quando lidava com as questões mais profundas. Esse é o mesmo fascínio pela ciência que atrai o público hoje. (E, claro, muitos cientistas também.) Mesmo que a tecnologia digital tenha uma influência muito maior no cotidiano, livros sobre buracos negros e o Big Bang vendem bem mais do que os sobre as maravilhas tecnológicas.
Vemos mistérios no céu e na terra e queremos desvendá-los. Será que a ciência pode dar cabo dessa missão? Será que pode explicar "tudo"?
Como argumento em detalhe em meu novo livro "Criação Imperfeita: Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza", que sai em meados de março, a ciência jamais poderá explicar a realidade por completo. Uma das razões é que simplesmente não podemos conhecer tudo o que existe.
O que sabemos do mundo material é obtido de duas formas: por meio dos nossos sentidos -vemos o Sol, sentimos calor, vemos as cores, ouvimos sons... (mesmo aqui existe um problema, já que nossa percepção da realidade pode ser distorcida)- e, de forma indireta, com nossos instrumentos.
Os limites do conhecimento dependem da precisão desses instrumentos que, apesar de aumentar sempre, é limitada. Ou seja, existe uma região "lá fora", além do que podemos medir, além do que podemos saber. Mesmo que o círculo do conhecimento cresça sempre, essa região sempre existirá. Estamos cercados por uma escuridão perene. Nossas teorias contam apenas parte da história. Será que devemos então abandonar Stevie Wonder e Lucrécio e abraçar o medo? Não! Quando paramos de perguntar, estagnamos: o círculo do conhecimento passa a nos apertar. Se paramos de perguntar, o desconhecido deixa de ser um desafio e transforma-se num monstro. Talvez nunca saibamos todas as respostas; mas, ao tentar, permanecemos livres.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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