terça-feira, 2 de novembro de 2010

Michel Onfray: a potência de existir (parte 2)

       No capítulo 3 da primeira parte do livro, Michel Onfray desenvolve a proposta de um sistema hedonista. O autor começa por uma máxima de Nicolas-Sébastien Chamfort, a qual chama de imperativo categórico hedonista: “frua e faça fruir, sem fazer mal nem a você nem a ninguém, eis toda a moral”. Para Onfray tudo está dito aí porque a fruição de si não é possível ou pensável sem a fruição do outro, pois esta é definidora daquela. Quando não há o outro, como em Sade, não há fruição, não há moral.
        Neste tópico, o autor procura resgatar a dignidade do termo hedonista, dado que já fora acusado de uma série de coisas em função de sua opção filosófica. Tais acusações, acredita o autor, resultam do distúrbio histérico que a simples menção da palavra prazer provoca. São processos de transferências em que atribuímos ao outro aquilo que nos habita. Onfray afirma ainda que sua proposta foi vinculada à fruição grosseira, ao apetite voraz e compulsivo da sociedade consumista. Mas então de que trata Onfray quando fala de hedonismo?
         Onfray constrói em seu manifesto uma proposta de libertação do corpo, de uma descristianização do corpo, na qual a visão platônica e cristã seja substituída por uma visão ateológica e libertária. E quando Onfray fala do corpo, também está falando de alma, de ser e, portanto, sua proposta filosófica provoca desdobramentos que vão a uma estética cínica (rever também o preconceito ocidental que corroeu o significado deste adjetivo), a uma ética eletiva, a uma erótica solar, a uma bioética prometeica e a uma política libertária. Cada um destes desdobramentos constitui um capítulo da obra, justificando subtítulo manifesto hedonista.
        Sobre isso diz Onfray: “Vencida a marca dos trinta livros publicados, sinto a necessidade de fazer um balanço da questão do hedonismo. Se eu precisasse reduzi-lo a uma interrogação, seria evidentemente a de Espinosa: ‘o que pode o corpo?’ Ao que preciso acrescentar: em que ele se tornou o objeto filosófico predileto? Depois, questões em cascata: Como pensar o artista? De que maneira instalar a ética no terreno estético? Que espaço deixar a Dionísio numa civilização totalmente submetida a Apolo? Qual a natureza da relação entre hedonismo e anarquismo? Segundo que modalidades uma filosofia é praticável? Que pode o corpo esperar das biotecnologias pós-modernas? Que relações biografia e escrita mantêm em filosofia? De acordo com que princípios são forjadas as mitologias filosóficas? Como descristianizar a episteme ocidental? Novas comunidades são possíveis?
         Responder a essas interrogações requer uma série de desenvolvimentos constitutivos de um pensamento existencial radical. Donde a relatividade do artista, a ética imanente, a estética cínica, a política libertária, o nietzschianismo de esquerda, o materialismo sensualista, o utilitarismo jubiloso, a erótica solar, a bioética prometeica, o corpo faustiano, o hápax existencial, a vida filosófica, a historiografia alternativa, a ateologia pós-cristã, os contratos hedonistas – cada um deles, uma oportunidade para reencantar nosso tempos melancólicos com a proposição de um pensamento a viver.”
          Em suma, o hedonismo em Onfray é um sistema filosófico totalizante que engloba toda as áreas de ação humana e que para ser praticado exige que nasçamos de novo, livres de toda a episteme judaico-cristã, puros e simples como qualquer corpo que respeita sua natureza primeira. Eu traduziria o hedonismo de Onfray neste provérbio de William Blake: “A luxúria do bode é a glória de Deus. A fúria do leão é a sabedoria de Deus. A nudez da mulher é a obra de Deus”.
Fernanda Meireles




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