terça-feira, 2 de novembro de 2010

Michel Onfray: a potência de existir (parte 1)

         Ando em dívida com este meu blog de filosofia. Há um projeto parado – Nietzsche e a Tragédia – e outro que precisa ser iniciado – a discussão do trabalho do francês Michel Onfray. A minha confluência astrológica de Gêmeos com Peixes é minha delícia e meu desespero, pois me leva a ter de três a cinco livros na cabeceira, todos em processo de leitura ou releitura, e, pior ainda, de áreas diferentes. Atualmente, há dois do Jung, este do Onfray, um do Drummond, um do William Wordsworth e dois do Quintana. Pelo visto, me superei porque a conta final dá sete!
           Mas nesta terça, feriado, tomei a decisão de terminar de ler o Rascunho que rodou a semana toda comigo e começar a postar sobre o livro do filósofo Michel Onfray, “A potência de existir – manifesto hedonista”. O projeto do Nietzsche, eu fico devendo, principalmente a mim, porque esses dois blogs que criei são muito mais uma forma de exercitar a escrita. Daí o conselho para que os leitores não esperem muito deles, não são nada além de exercícios de escrita e de apreciação de leituras.
           Bom, chega de tergiversações, vamos aos fatos. Em post anterior, encabecei a imagem do livro com o seguinte texto: “a revolta dionisíaca na filosofia libertária de Michel Onfray”. E quem é o autor? Ele mesmo se apresenta no prefácio intitulado “Autorretrato com criança”. Começa afirmando que “morri aos dez anos de idade, numa bela tarde de outono, numa luz que dá vontade de eternidade”. Então, o autor passa a relatar o período doloroso de quatro anos, entre os dez e os quatorze, em que foi entregue pelos pais a um orfanato de padres salesianos, localizado na Baixa Normandia.
          Antes disso, quer dizer, até os dez, o menino, filho de família muito pobre, viveu entregue à natureza na sua província natal de Chambois. “Antes de ler as Geórgicas eu as vivi, minha carne em contato direto com a matéria do mundo”, escreve Onfray. Sua dor na época, era o desprezo agressivo que sofria por parte de sua mãe, que, por sua vez, tinha sido abandonada seguidas vezes pela família natural e pelas famílias substitutas. O pai parece ter sido uma figura, um ser negado e silenciado, “...massacrado pela brutalidade de um trabalho extenuante de operário agrícola e pelas misérias de uma vida da qual nunca se queixava”.
         A mãe o entrega a um orfanato salesiano, nomeado pelo autor como Giel (composto lexical a partir dos termos franceses ‘gel’ (gelo) e fiel (fel)), em 1966. Onfray descreve a arquitetura do lugar, basicamente construído em granito escuro, como o projeto de uma construção carcerária, de um hospital ou quartel, cercado por oficina, estufa e uma fazenda para práticas agrícolas. O conjunto todo é maior que sua aldeia natal, contabilizando-se os seiscentos alunos mais os encarregados pelo ensino. Para o menino de dez anos, até então criado livre, aquilo lhe pareceu uma máquina opressora, uma ‘cloaca antropófaga’, em suas palavras. Nela, “carne e alma são vigiadas inclusive à distância, principalmente à distância”.
         Nesse prefácio, que seria apenas um relato biográfico, Onfray já começa a se posicionar filosoficamente. Sua recusa da dicotomia platônica entre corpo/alma aparece logo à quinta página quando, ao descrever o caráter opressor do edifício do orfanato, afirma: “Para um garoto de dez anos, do alto de seu um metro, encontrar-se nos braços desse edifício oprime o corpo, logo, a alma”. Emerge, também, com esse posicionamento, a defesa do hedonismo, a revolta dionisíaca.
        Do período no orfanato, Onfray relata humilhações freqüentes, falta de higiene e, conseqüente, horror ao corpo, trabalho exaustivo e disciplina rígida (“Não há um segundo sem um cheiro de terror.”), espancamentos e assédio sexual. A dor vivida nos tempos do orfanato brota nas palavras que compõem esse prefácio, demonstrando claramente as razões que silenciaram e postergaram por tantos anos essa escrita e essa releitura catárticas deste período da vida do autor. “Quatro anos, quatro invernos perpétuos, quatro vezes 252 dias de gelo e fel, mil dias diante do cadáver decomposto da minha infância. Aos quatorze anos, eu tinha mil anos – e a eternidade atrás de mim”.
        Neste prefácio catártico, doloroso e, às vezes, de uma ironia corrosiva, o autor também chama nossa atenção para a hipocrisia, os preconceitos, o ódio ao intelectual e ao conhecimento presentes nas falas dos padres. Mostra também a diferença entre palavras e atos eclesiásticos: o amor ao próximo pregado no púlpito dando lugar às humilhações e violências; a justiça divina pregada pelo texto bíblico dando lugar à divisão dos alunos em função de suas classes sociais... Cada palavra nesse prefácio vaza um soluço engolido pelo autor (“Trago na garganta soluços engolidos há séculos”).
           Entretanto, o livro não se compõe somente desse relato autobiográfico. Conforme menciona o autor, nesse prefácio, ele entrega a seus leitores parte das chaves de seu ser. Essas chaves são fundamentais para que entendamos os fundamentos existenciais do manifesto hedonista, caráter essencial de “A potência de existir”. Antes que leituras apressadas atribuam ao adjetivo hedonista significados puramente sexuais (fato corriqueiro numa sociedade reprimida e moralmente doente como a nossa), é importante circunscrever o que, nesta obra, se toma como hedonismo.
Fernanda Meireles

Nenhum comentário:

Postar um comentário