sábado, 8 de maio de 2010

Música, física, experimentação


 A música é bifacetada. Como a partícula quântica, que surge às vezes como onda, outras
como corpúsculo, exibindo uma complementaridade intrínseca, a música manifesta dois pólos não-excludentes e intercambiantes: o do entretenimento, mais instintivo e lúdico, e o da perquirição, mais cerebral e metódico. Quando um vem à tona, tende a ensombrar o outro. Mas há entre eles, mais do que conflito e competição, uma dialética de adjuntos, sem síntese vulgar. Eles se compadecem, se tonificam no espaço-tempo físico e humano, na dinâmica inexorável das civilizações.

A urbanização impactante ocorrida na Europa, no início do século XX, veio escoltada por revoluções artísticas e científicas. Na física, eclodiram as teorias relativísticas – a especial e a geral – de Einstein, bem como a mecânica quântica. A relatividade especial mostrou o entrelaçamento de tempo e espaço, e a relevância da luz como constante e limite máximo de velocidade. A relatividade geral introduziu a curvatura associada à gravitação: geometria e campo gravitacional fundindo-se em sua evolução, gerando uma não-linearidade gigantesca. O princípio de incerteza de Heisenberg trouxe a noção de variáveis conjugadas, como posição e momentum (a massa multiplicada pela velocidade). Ao tentarmos medir uma delas, surge uma imprecisão na medida da outra. Bohr qualificou de “complementares” as variáveis ou propriedades que não emergem simultaneamente numa mesma experiência, porém convivem como “opostos” latentes em um processo perdurável de alternâncias, sem solução causal.

A música, nos anos de 1900 e décadas seguintes, foi um território propício à experimentação. Stravinski elaborou construções rítmicas peculiares, e fundou um politonalismo desafiador. Varèse conduziu a pesquisa da percussão e da espacialização do som, produzindo verdadeiros big-bangs de ruídos. Daí resultou um aumento no número de dimensões do espaço musical, semelhante à ampliação das dimensões do espaço físico, investigada, na trilha de Einstein, por matemáticos como Weyl, Kaluza e Klein, que chegaram a ultrapassar a quadridimensionalidade einsteiniana, com a finalidade de abranger outras interações além da gravitação.

Um compositor singular desse período foi Erik Satie. Com humor implacável, melodias e ritmos por vezes singelos, mas sempre funcionais, e harmonias surpreendentes, criou uma dicção personalíssima. Um de seus projetos mais intrigantes/instigantes, a musique d’ameublement, prevê a execução musical como recurso para ambientar eventos, por exemplo exposições de pintura. Música em geral constituída de fragmentos de canções populares, repetidos continuamente, funcionando então tal qual uma cadeira/poltrona confortável (“un bon fauteil”) ou, digamos, um tapete bonito numa sala. A idéia de promover uma interferência entre a apresentação sonora e o acontecimento que ela põe em relevo já é, em si, inusitada para a época (1920). Inaugura um gênero de intervenção que voluntariamente se dissimula para realimentar o ente-evento. E o jogo relacional entre a música despojada e a ação artística “séria” que ela acompanha nos ensina a relativizar a distância entre o que tratamos como puro divertissement e o que tendemos a reverenciar como arte elaborada. Contra-sisudez sati(e)rica...

Igualmente desconcertante foi Charles Ives. Seu instinto indagativo o levou a empregar em uma mesma obra procedimentos por muitos considerados conflitantes. O fato é que ele desenvolveu pioneiramente tanto a área politonal quanto a multirrítmica, evocando neste sentido o dualismo quântico da integração de extremos. Chegou a explorar, inclusive, o microtonalismo, ou seja, a inserção de intervalos menores que o semitom na prática musical. Isto se dá no âmbito da propagação ondulatória clássica (macroscópica), embora o prefixo “micro” sugira uma escala subatômica. Para cada onda sonora há certa freqüência no intervalo audível. Alterando freqüências próximas pertencentes a este intervalo, numa mesma proporção, distinguimos um igual espaçamento nas alturas dos sons. Efetuando subdivisões do semitom tornamos menores as diferenças de freqüência, até não conseguirmos mais distingui-las, pois para cada faixa de valores há uma diferença mínima discernível. Apesar do esgotamento do processo divisório, obtemos um extenso conjunto de notas capaz de motivar combinações que a música ocidental anteriormente desdenhava.

Um dos cultores do universo microtonal no Brasil foi Walter Smetak, suíço radicado na Bahia. Seu trabalho se individualizou e ganhou vulto também por outros fatores, como o da confecção de instrumentos exóticos geradores de novas sonoridades, e o do convívio com músicos da esfera popular, especialmente Caetano Veloso e Gilberto Gil, responsáveis em larga medida pela divulgação de seus experimentos. É sugestivo que atualmente os recursos computacionais promovam uma recuperação do microtonalismo.

A proposta efetiva de reforma estrutural do tonalismo surgiu com Schoenberg, tendo sido adotada por Berg e por Webern. Nesse sistema, construído sobre uma base de doze sons igualmente relevantes, as distâncias entre os tons – os intervalos – não são como os semitons do círculo das quintas tonal. E é possível montar conjuntos de intervalos com as doze notas organizadas em série, com doze classes de alturas, cada uma destas aparecendo só uma vez. Recursos como inversões e transposições asseguram variedade ao método.

A idéia dos tons que têm importância equivalente numa série lembra a de Einstein quanto aos referenciais inerciais. Eles se deslocam em movimento relativo de velocidade constante, e qualquer um deles é igualmente capaz de localizar posições, medir distâncias e intervalos de tempo. Schoenberg, assim como Einstein, concebia espaços multidimensionais.

Num patamar ainda mais avançado situam-se as composições de Webern, introdutor da “melodia de timbres”, repleta de transições não-lineares de “cores” e de permutações de sons e silêncios. As miniaturas webernianas, chegando à duração de alguns segundos, fizeram com que Stravinski se referisse a seu autor como “lapidador de diamantes”. De fato, Webern alcançava a diversidade minimizando intencionalmente o conjunto de parâmetros sonoros e dele extraindo o máximo, o que recorda o sugestivo termo “minimax”, empregado na teoria matemática dos jogos. John von Neumann demonstrou em 1928 que num jogo, fixados certos pressupostos, a trama se desenvolve rumo a um compromisso de otimização entre um mínimo e um máximo.

Confrontando a relativa linearidade da música de Schoenberg com a riqueza timbrística e a eficaz compactação da obra de Webern, nos vem à mente a passagem do espaço-tempo plano para o curvo, da relatividade especial para a geral. Nesta, a curvatura foi eleita para acolher os referenciais não-inerciais (acelerados) e o campo gravitacional, afiançando a ocupação do arcabouço geométrico por meio da matéria-energia (Albert Einstein: The Meaning of Relativity, 1955, Princeton , Princeton University Press).

Na esteira de Webern, o serialismo integral (Boulez, Stockhausen) infiltrou mais parâmetros do som na organização da série. Outras tendências revitalizadoras, ainda, se firmaram a partir do pós-guerra, como as correntes eletroacústica e aleatória (Flo Menezes, org.: Música Eletroacústica, 1996, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo).
John Cage, figura central da música do século XX, escolheu a indeterminação e o acaso como diretrizes de seus trabalhos. Aproximou-se do ideário dos quanta e da ciência do caos. Uma de suas peças, hoje famosa, 4’33” (1952) causou polêmica na época ao fazer emergir a dimensão inquietante do silêncio prolongado, revelando seu potencial, no fundo tão prenhe de informações quanto o “vácuo” do modelo de partículas elementares.
Buscando uma equação que descrevesse o movimento quântico-relativístico do elétron, Paul Dirac desvelou a antimatéria: lacunas não preenchidas em estados de energia negativa. O preenchimento dessas lacunas configura o “vácuo”, ou seja, a ausência de partículas.

A teoria do caos lida com processos de aparência aleatória que ocultam uma ordenação imprevista. Esses fenômenos não são “caóticos” na acepção comum. Tal como na geometria fractal, onde há emergência de padrões que ao final se mostram organizados, em toda a física do caos os comportamentos não se manifestam determinísticos à primeira vista, porém o são, num sentido não convencional. Essa junção do exato com o impreciso é herdeira da revolução quântica.
A música popular brasileira (MPB), criativa e variada desde seus primórdios, já chamava a atenção de Villa Lobos, que dela se utilizou amplamente como matéria-prima e como fonte de inspiração. Gilberto Mendes, outro de nossos compositores eruditos, também demonstrou sempre abertura em relação à MPB, chegando mesmo a incorporá-la na forma de montagens, em estruturas aleatórias (Gilberto Mendes: Uma Odisséia Musical, 1994, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo).

Dois momentos cruciais na MPB foram, como se sabe, a bossa-nova (BN) e o tropicalismo. A primeira procurou descartar a oposição “consonante” X “dissonante”, que vedava às composições o influxo de novos ares. Novas marés assentaram sobre o solo, sob o sol, sambas de notas sós, desafinadas, afinadas com um modo diferente de integrar as funções melódica, harmônica e rítmica. Isto se constata exemplarmente na música de Tom Jobim e nas interpretações de João Gilberto (Brasil Rocha Brito: Bossa Nova, 1960, em Balanço da Bossa e Outras Bossas, de Augusto de Campos, 1978, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva).

O movimento tropicalista, de extração “antropofágica” (Oswald de Andrade) e aberto às expressões culturais da época (geração beatnik, Beatles, pop art, poesia concreta), provocou impacto ao retomar, num contexto sucedâneo, a experimentação capitaneada pela BN. Caetano e Gil, principalmente, com sua arte requintada, colaboraram para fixar parâmetros composicionais inovadores, e para introduzir na MPB instrumentos eletroacústicos e ruídos.

Conforme assinala Augusto de Campos (Informação e Redundância na Música Popular, 1968, no já citado Balanço da Bossa e Outras Bossas) a música vinculada aos veículos de massa, de acordo com a teoria da informação, tem dificuldade de ultrapassar o código médio do ouvinte. As inovações costumam custar perplexidades. Elas se dão mais timidamente quando o repertório do receptor se encontra sedimentado em torno de um número restrito de regras aceitas como dogmas. Isso também vale para boa parcela da área “clássica” ou “erudita”, aquela fatia de mais fácil assimilação, que findou fatalmente incorporada ao mercado. A chamada música de vanguarda traduz uma outra realidade: a da investigação laboratorial, liberta do consumo imediato. Ela pode desdenhar a redundância. Mas se levar isso ao limite, ela atina com a incomunicabilidade. Desatina.

Penso que é salutar para o ouvinte/receptor, dotado de emoções, contradições, instabilidades, a existência das duas faces musicais: uma ligada mais fortemente à previsibilidade (folclore, dança, canção popular urbana), outra buscando escapar à repetição e, postando-se à frente, encarnar a pesquisa pura. Em muitas situações de nossas vidas uma canção simples pode ser mais sedutora que uma peça de vanguarda de alta complexidade. Em outras, de maior introspecção, o “ponto luminoso” propende a deslizar em paralaxe pulsátil para o perfil do fabbro, para o intento do invento.

A explicação freudiana do inconsciente destruiu a imagem determinista do homem. E ainda: a partir de recentes descobertas da neurobiologia cada vez mais se aceita que o cérebro tem, remotamente, origem quântica. Pertence portanto ao planeta da complementaridade, como sempre soube o tao chinês, que inspirou por sinal a sincronicidade de Jung.. É claro que entre a física dos quanta e a vida existem inúmeros enigmas de encadeamento. Apesar disso, a bipolaridade dos conjugados parece expor-se, quantatuagem, ex(er)citar-se, taotocronia, nos atos humanos de criação e de recepção dos signos artísticos/científicos (Roland de Azeredo Campos: Arteciência, 2003, São Paulo, Perspectiva). A convivência e a alternância desses dois modos – um lúdicodionisíacodançante, outro reflexivoapolíneoinquiridor – está, quem sabe, na própria essência do homo sapiens.

Sugestões adicionais de leitura:

António Damásio
: O Mistério da Consciência, 2000, São Paulo, Companhia das Letras.
Augusto de Campos: Música de Invenção, 1998, São Paulo, Perspectiva.
Caetano Veloso: Verdade Tropical, 1997, São Paulo, Companhia das Letras.
Edward Lorenz: A Essência do Caos, 1996, Brasília, Editora da Universidade de Brasília.
Jean & Brigitte Massin: História da Música Ocidental, 1997, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
John Cage: De Segunda a Um Ano, 1985, São Paulo, Hucitec.
Roger Penrose: O Grande, o Pequeno e a Mente Humana, 1998, São Paulo, Editora da Unesp

 Roland Azeredo Campos, disponível em http://www.erratica.com.br

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