sábado, 22 de maio de 2010

Nietzsche e o Nascimento da Tragédia – V

 
     Vamos começar mostrando, aqui, o tratamento que Nietzsche dá ao herói na tragédia por meio da contraposição entre Édipo e Prometeu. Inicialmente, o autor afirma que os heróis são as máscaras apolíneas através das quais se pode olhar no mais intimo e horrorosa da natureza. Essas máscaras permitem-nos olhar este íntimo sem nos cegarmos. Édipo é a figura que, embora nobre e sábia, não consegue escapar de seu destino, de seus erros e da miséria. Seus sofrimentos levam-no, já na velhice (Édipo em Colono), a um estado de serenojovialidade. Isso nos vem dizer que seu comportamento puramente passivo leva-o a uma suprema atividade que se estende além da vida, enquanto sua ação apenas o encaminha  à passividade (Se ele não tive resolvido sair de casa para fugir da maldição, mas ao sair, ao agir, ele desencadeia um estado de coisas que o encaminham ao estado passivo – de sofrer o destino).
            Segundo Nietzsche, enquanto Édipo corresponde á glória da passividade, Prometeu de Ésquilo constitui a glória da atividade. Para nos evidenciar isso, incia com um belo trecho de Goethe:
            Aqui sentado, formo homens
            À minha imagem,
            Uma estirpe que seja igual a mim,
            Para sofrer, para chorar,
            Para gozar, para alegrar-se
            E para não te respeitar,
            Como eu!
            O homem, agora, em seu status titânico, ousa desafiar os deuses em nome da justiça e, assim, conquista sua cultura e sua autonomia, dono agora da existência e dos limites desta – ele [o homem] possui o fogo. Antecipa-se, com isso, o crepúsculo dos deuses. Nietzsche defende que, com Ésquilo, fica claro que o heleno (como chamava os gregos anteriores ao socratismo) e, especialmente, o artista heleno, “experimentava com respeito às divindades um obscuro sentimento de dependência recíproca e precisamente no Prometeu de Ésquilo tal sentimento está simbolizado” (p.66). O artista heleno, por meio de um titã ousado, atreve-se a cobrar dos deuses sua parte obtida por meio da expiação pelo sofrimento eterno. Mesmo que se sofra a vida toda é direito humano possuir o fogo. Édipo é o santo que aceita o destino e expia sem nada dizer; Prometeu é o herói que ousa pedir sua parte na cota das criaturas mesmo que pague caro por ela.
            O autor postula a hipótese de que este mito tenha, para o heleno, a mesma significação que tem, para o semítico/judaico-cristão, o pecado original. Em suma: o desafio à divindade é o pecado original pelo qual se paga a vida toda, todo homem e toda mulher. O sacrilégio e a aceitação de suas conseqüências é a única saída que resta ao homem. Entretanto há uma diferença entre o tratamento semítico (cristão) e o tratamento grego: A narrativa semítica coloca o sacrilégio como fruto da mentira, da cobiça, da sedução. Para os gregos, trata-se de um ato de virtude, de cobrança, uma afirmação de dignidade, uma necessidade para aquele que “aspira ao titânico” (p. 68). Há também, nessa configuração narrativa grega, um elemento dionisíaco.
         Apolo, quando conduz os seres à singularidade, estabelece limites, impõe exigências de autoconhecimento e de comedimento. Essa forma se congelaria caso o elemento dionisíaco, motivado pela aspiração titânica, não movesse o homem sempre a ser, nem que seja por momentos, maior do que esta forma. Na metáfora de Nietzsche, a maré alta do lago, reformula seu próprio movimento e impede sua estagnação. São também as águas do Nilo fertilizando anualmente suas margens, mantendo a prosperidade daqueles que dela dependem. O inconsciente deve regularmente fertilizar o consciente para que possamos crescer. O ego Prometeu necessita roubar o sagrado mesmo que pague por isso. Somos a tragédia e o palco onde se dá.
         Nietzsche mostra ainda que, ao mesmo tempo em que Prometeu é uma máscara dionisíaca,  é também, em seu afã de fazer justiça ao humano, um personagem apolíneo. Ele é, portanto como nós, um ser de dupla natureza. 
     O sacrifício de Dionísio, representado na tragédia grega, é responsável pela imagem idealizada da personagem central (Édipo, Prometeu...): “...o único Dionísio verdadeiramente real aparece numa pluralidade de configurações , na máscara de um herói lutador e como que enredado nas malhas da vontade individual. Pela maneira como o deus aparecente fala e atua, ele se assemelha a um indivíduo que erra, anela e sofre: e o fato de ele aparecer com tanta precisão e nitidez épicas é efeito do Apolo oniromante que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco...” (p. 69). Esse Dionísio é o mesmo dos Mistérios, aquele despedaçado pelos Titãs e ressurgido como Zagreus. Seu despedaçamento e seu renascimento simbolizam o processo de individuação, um processo crístico. Nietzsche reafirma que a arte é a única possibilidade jubilosa de um resgate da unidade anterior, perdida com a individuação. 

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