quinta-feira, 20 de agosto de 2009

HERÁCLITO de ÉFESO


Heráclito viveu na transição entre os séc VI e V aC. Filho de nobres e herdeiro do trono renuncia ao poder em favor do irmão mais novo, abandona a casa paterna e vai viver nas montanhas. Torna-se um misantropo mal quisto por toda a população da ilha a quem ele declaradamente desprezava. Suas críticas ácidas recaem não somente sobre seus concidadãos, mas também sobre os poetas antigos, os filósofos contemporâneos e sobre a religião.
Recebeu a alcunha de ‘o obscuro’ em razão do estilo denso e cheio de aforismo com que escreveu seu livro em prosa denominado Da Natureza. Na obra, toma como foco de discussão temas bastante polêmicos dando-lhes soluções audaciosas. Seu principal objetivo é dar uma resposta ao problema da unidade permanente exigida pela razão frente à pluralidade, mutabilidade e efemeridade das coisas observadas pelos sentidos. Sobre isso Santos (2001, 87) afirma que
“Heráclito, ao estabelecer seu projeto filosófico, parte da observação de que a realidade manifesta-se como um fluxo perpétuo de todas as coisas que a constituem. Nada permanece estável, imóvel, mas tudo muda, tudo se transforma sem cessar e nada escapa a esse fluir perene e universal. Ainda que algo, aparentemente, iludindo nossos sentidos possa nos levar a uma opinião contrária, na verdade, por trás dessa aparência estável, tudo, sem exceção, participa do continuo e inexorável processo de mudança inestancável e universal . A única coisa que permanece inalterável é a própria mudança, o movimento, A realidade é, portanto, essencialmente processo.”
Como não fazer relação dessa visão com a proposta do eterno movimento presente no texto taoísta do I Ching?
O rio (“Não se pode banhar duas vezes no mesmo rio”) – sua metáfora mais conhecida - é emblemática de seu pensamento, dado que só aparentemente o rio e o homem que nele se banhou são sempre os mesmos. Santos (2001, 87-88) ainda completa:
“Não há no desenrolar do viver a possibilidade de fazer duas experiências idênticas. Haverá sempre um acréscimo, uma espécie de acúmulo, de enriquecimento que o torna mais seguro ou descrente e temeroso em relação ao que se experimenta. Todas as coisas, indistintamente, portanto, são e não são ao mesmo tempo.”
Novamente, está-se a ouvir coisas semelhantes àquelas propostas no oriente.
Para tornar o processo ininterrupto, aquilo que é precisa deixar de ser e tornar-se outra coisa. Assim, Heráclito não nega a unidade, mas também aceita como verdadeiras a multiplicidade e a mudança. O rio é a imagem dessa contradição, é unidade e mudança ao mesmo tempo. O rio é a imagem do vir-a-ser, o devir, o processo – essência da natureza. Para ser rio precisa continuamente deixar de ser o rio que é naquele momento. Se lhe interrompem o movimento, deixa de ser rio. “As coisas só existem realmente no e pelo vir-a-ser perpétuo. Esse vir-a-ser (processo, fluir, devir) é a passagem continua das coisas de um contrário ao outro” (Santos, 2001, 88). A existência está, então, na síntese harmônica dos contrários. Daí o conflito ser também algo natural, o caminho inevitável na construção da harmonia. Harmonia construída e mantida na tensão. “A guerra é o elemento natural do jogo, senhores, jamais me revelarei” – alguém cantou por aí. Na fonte, ou seja, nas palavras de Heráclito é assim: “A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros, homens; de uns, escravos, de outros, homens livres” (Heráclito, Frg. 126).
Além de relações com o taoísmo, percebo relações com outras correntes místicas, metafísicas, ou qualquer coisa que parecida... pois não vou entrar no mérito desta questão. O hermetismo e a imagem arquetípica do oroboros se fazem presente nos fragmentos a seguir: “O caminho para baixo e o caminho para cima são um e o mesmo” (Heráclito, Frg. 60) e “Na circunferência, o princípio e o fim se confundem” (Heráclito, Frg. 103).
Para Heráclito, o Logos, representado empiricamente pelo fogo, é o princípio existencial, uma unidade múltipla, de guerra e paz, luta e harmonia, contradição e síntese. O fogo, em razão de sua natureza, representa bem o princípio que se muda em todas as coisas. A totalidade e multiplicidade da realidade são manifestações da das transformações do fogo. Na sua chama, dá-se a harmonização dos contrários, na sua ação dão-se a morte/destruição e a manutenção da vida. No seu fluir, no seu devir, as coisas vêm à existência ou abandonam-na.
Segundo Santos (2001, 92),
“Na sua doutrina, Heráclito afirma, de forma oracular, que o Logos é aquilo segundo o qual tudo acontece; é o pensamento que tudo dirige e, através de tudo, tudo governa. O Logos é a Razão Universal, o Uno, O Principio imprincipiado e incondicionado que tem o poder de unificar tudo, de relacionar e ligar todas as coisas umas às outras. Essa presença do Logos faz com que o devir (vir-a-ser) não aconteça de forma desordenada, confusa e ao acaso. O devir é conduzido, regulado e orientado segundo essa Lei eterna (logos), Razão Universal.”
Estamos em relação constante com essa Lei que tudo governa e a busca da sabedoria faz com que não nos desviemos dela, que nos mantenhamos despertos e em conformidade com o devir natural de tudo, com o caminho do Uno.
Enquanto para Tales, Anaximandro e Anaxímenes, a transformação do principio originário se dá pela diferenciação, para Heráclito, a unidade é multiplicidade e esta se resolve na unidade. Essa síntese se dá no interior da Physis através do fogo. A ação do Logos mantém sob medida a ação do fogo, produzindo cosmo e não caos, num equilíbrio natural e racional. Para melhor compreender esse Logos, eis algumas palavras de Heráclito:
“Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo aconteça conforme o Logos, parece não terem experiência experimentando-se em tais palavras e obras, com eu as exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa. Os outros homens ignoram o que fazem em estado de vigília, assim como esquecem o que fazem durante o sono.” (Heráclito, Frg. 1).
“A sabedoria consiste numa só coisa, em conhecer, com juízo verdadeiro, como todas as coisas são governadas através de tudo” (Heráclito, Frg. 4).
“O bem pensar é a mais alta virtude; e a sabedoria consiste em dizer a verdade e em agir conforme a natureza, ouvindo sua voz.” (Heráclito, Frg. 112).
Sobre a alma, diz Heráclito que é constituída de fogo, embora tenha se originado na água e que a melhor alma, a mais sábia, é a seca porque tem a natureza do fogo/Logos, torna-se fonte do conhecimento verdadeiro. Se se transforma em água ou terra, ou seja, se fica presa a sentimentos e emoções, morre: “Para as almas a morte é transformarem-se em água, a morte é transformar-se em terra; a água gera-se da terra e da água alma” (Heráclito, Frg. 36) e “Uma alma seca é mais sábia e melhor” (Heráclito, Frg. 118).
O verdadeiro conhecimento está em ouvir a voz da Physis, está em aprofundar-se no conhecimento de todas as coisas e no autoconhecimento. Esta é a única forma de conhecer a profundidade e a grandeza do Logos que habita cada um de nós. Sobre isso, o fragmento a seguir é de rara beleza: “Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Logos” (Heráclito, Frg. 45).
Russel (2002) mostra que Heráclito na verdade bebeu das fontes dos jônios e de Pitágoras, entretanto deu-lhes nova roupagem. De Anaximandro reteve a volta ao ilimitado na busca da de perfeição e de Pitágoras a noção de harmonia. Quanto à questão do conhecimento, Russel lembra que uma das máximas de Heráclito era de que “O aprendizado de muitas coisas não ensina a compreensão”. A sabedoria está em captar a fórmula subjacente/logos que é comum a todas as coisas, mas a cegueira é tamanha que cada um se julga dono de uma sabedoria particular, própria. A multidão deve ser desprezada em razão dessa cegueira e não se deve tomar essa fórmula comum como a opinião pública, pois, como já dito, a multidão é um agrupamento de gralhas cegas.
Hegel (1973) tem particular admiração por Heráclito por este ter tomado o processo como a natureza principal de tudo. A proposição de entender as coisas como devir, como processo, torna-o um dos pais da dialética, conceito caríssimo a Hegel. Em suas Preleções sobre a História da Filosofia, discute inicialmente o princípio universal heraclitiano, denominando-o de princípio lógico. Em seguida, trata dos modos de realidade deste princípio. Baseado na doxografia de Sexto Empírico, Hegel mostra que o princípio universal pode ser tomado de um modo abstrato, como tempo, e de um modo concreto, como fogo. Em sua forma abstrata, como processo abstrato, “o tempo é o primeiro que se oferece como o devir, é a primeira forma do devir.” Hegel então desenvolve a noção de tempo, demonstrando como sua natureza qualifica-o a ser tomado como princípio, como devir: “Não como se o tempo fosse e não fosse, mas o tempo é isto: no ser imediatamente não-ser e no não-ser imediatamente ser... No tempo, não é o passado e o futuro, somente o agora; e este é, para não ser, está logo destruído, passado – e este não-ser passa, do mesmo modo, para o ser, pois ele é”.
Para Heráclito, de acordo com Hegel, o fogo é o equivalente físico do tempo, é a forma real do processo, a substância do processo na natureza. O fogo qualifica-se a esta função por ser fluido, elemento de destruição, de criação e de transformação. O fogo nãso permanece.
Outro aspecto interessante abordado por Hegel é a relação da proposta de Heráclito com questões concernentes à consciência. As perguntas que faz são: Como o logos chega à consciência? Qual é sua relação com a alma individual? Posto que é considerado como processo, o ato de tomar consciência do principio universal é algo imediato, mediado e morto, pois ao se configurar em pensamento, em unidade de compreensão, a processualidade desaparece. Por essa razão, dizia Heráclito “Morto é o que vemos em vigília, e o que vemos dormindo é sonho”. A objetividade da consciência delimita, acarreta finitude. Daí, pensar-se que o to de tomada de consciência dever ser recorrente, uma tarefa diária de compreensão das coisas e de si mesmo. Lembrando-se sempre de que, como já dito, o aprendizado de muitas coisas não leva à compreensão.
Abbagnano (1976, 35) discute a interpretação que Hegel dá à doutrina heraclitiana. Segundo Abbagnano, Hegel interpreta erroneamente a doutrina de Heráclito quando pensa que a união dos opostos se resolve numa síntese harmônica e conciliatória. Ao contrário, o estado permanente entre os opostos é a guerra. Isso porque Abbagnano lembra que Heráclito não era um filósofo otimista, mas pessimista e amargo, fato que teria motivado a tradição a chamá-lo de chorão.
De qualquer modo, otimista ou pessimista, fica de Heráclito um alerta àqueles que buscam: “Os que procuram ouro, cavam muita terra e encontram pouco”.

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